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segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Revoltas de Escravos na Roma Antiga - comunicação 2011

Revoltas de Escravos na Roma Antiga - comunicação 2011

AS REVOLTAS DE ESCRAVOS NA ROMA ANTIGA E O SEU IMPACTO SOBRE A IDEOLOGIA E A POLÍTICA DA CLASSE DOMINANTE NOS SÉCULOS II A.C. A I D.C.: OS CASOS DA PRIMEIRA GUERRA SERVIL DA SICÍLIA E DA REVOLTA DE ESPÁRTACO

   Rafael Alves Rossi[1]

“O combate é de todas coisas pai, de todas rei, a uns manifestou como deuses, a outros como homens; de uns fez escravos, de outros livres.” (Heráclito)


Preâmbulo

            A presente comunicação é produto de uma pesquisa empreendida sobre as revoltas de escravos ocorridas em fins da República Romana e seu significado. Ela resume a dissertação de mestrado redigida recentemente sobre o tema e tenta dar conta de seus aspectos centrais, bem como divulgar o estudo realizado para provocar o debate.
            A hipótese central desta pesquisa é que, apesar de terem sido derrotadas militarmente, as grandes revoltas servis da Roma antiga serviram para pôr em xeque a teoria da escravidão natural, a visão do escravo como simples animal ou coisa, representada no discurso oficial e a própria afirmação da inferioridade dos escravos presente no discurso de intelectuais da aristocracia romana como Catão, que já relativizava a posição mais rígida da teoria aristotélica, provocando mudanças no discurso da classe dominante e na sua forma de perceber os escravos, produzindo uma fissura no plano ideológico, o que pode ser constatado nos textos que analisamos de Diodoro, Plutarco e Apiano, tratando-se, pela primeira vez, da afirmação patente da humanidade dos escravos que lutaram na Primeira Revolta de Escravos da Sicília, comandada pelo escravo doméstico Euno, e na Revolta de Espártaco, iniciada pelos gladiadores da escola de Lêntulo Baciato em Cápua, no Sul da Itália. Nos escritos desses autores, a capacidade de organização dos escravos rebeldes, que formaram exércitos e derrotaram o exército romano e seus generais em muitas batalhas, e a coragem em combate demonstrada pelos rebeldes sicilianos e espartacanos aparecem em muitas passagens e transparece nos textos dos ideólogos da aristocracia romana o reconhecimento dessas qualidades morais junto com a tentativa de reafirmar a suposta inferioridade natural dos escravos, que entrava agora em contradição com os fatos da política e da guerra, com a manifestação do talento, da inteligência e da bravura dos servos de Roma na cena pública. Desse modo, podemos concluir que os escravos do império romano obtiveram uma importante vitória simbólica que reverberou pelos séculos.
            A análise das fontes é enriquecida pelo uso do método comparativo, tentando traçar paralelos entre as revoltas de Euno e de Espártaco entre si e dessas revoltas de escravos antigos com aquelas ocorridas nos Tempos Modernos, percebendo pontos de interseção entre a escravidão antiga e a escravidão moderna, bem como suas diferenças fundamentais. O método estruturalista genético também aparece como um instrumento importante na análise, relacionando os textos dos autores individuais com a sua consciência de classe e o seu compromisso social, bem como com a ideologia de classe do grupo social ao qual pertenciam, percebendo as ambigüidades que se manifestaram de forma mais ou menos aguda dependendo do autor ou do contexto político e social em que o texto foi escrito. A ferramenta teórica que norteia a pesquisa é o marxismo, com suas contribuições possíveis e necessárias a esse debate.
           
Guerras Civis e Guerras Servis: a Crise da República e a Revolução Passiva

A Primeira Revolta de Escravos da Sicília se deu em 135 a.C. A revolta ainda estava em curso (durou de 135 a 132 a.C.) quando estourou o conflito entre Tibério Graco, o tribuno da plebe, e a oligarquia senatorial, em 133 a.C. A guerra servil influenciou a proposição urgente de uma reforma agrária no império. De 133 a 129 a.C. ocorreu a revolta de Aristônico, na Ásia Menor, outra revolta de grandes dimensões com protagonismo dos escravos. Seu início se dá paralelamente ao conflito envolvendo Tibério Graco. Desse modo, este que foi um dos momentos de luta mais intensa e feroz entre as facções da classe dominante foi acompanhado de duas rebeliões servis. A relação entre as guerras civis e as guerras servis parece evidente, se analisarmos o texto de Apiano acerca da luta entre Tibério Graco e a oligarquia senatorial e o novo panorama social, com escravos ocupando os postos de trabalho de camponeses livres e se insurgindo contra Roma, estando a proposta de reforma agrária de Graco em estreita relação com o movimento de rebeliões servis:
(...) o recente descalabro sofrido na Sicília por estes nas mãos de seus escravos por ter aumentado o número de servos pelas exigências da agricultura (...) a guerra sustentada pelos romanos contra eles (os escravos), que não era fácil, mas sim muito prolongada em sua duração e envolvendo diversos tipos de perigos. (...)” (APIANO, Guerras Civis, I, 9)
O tribunato de Caio Graco deu-se em 123-122 a.C., quando ocorreu uma nova luta acirrada por reforma agrária e a proposta de mudanças no regime republicano com a participação de outras camadas sociais de forma mais ativa e efetiva da vida política, como o direito de os eqüestres ocuparem os postos de jurados, privilégio reservado anteriormente aos senadores, e o direito de cidadania romana aos latinos e a concessão dos privilégios dos aliados latinos aos demais aliados itálicos. O irmão de Tibério Graco apontava também para uma redistribuição da riqueza social de Roma com as concessões feitas ao proletariado urbano como “a distribuição regular de cereais por metade do preço a que eram cotados no mercado” (BLOCH, 1956, p. 160). Leon Bloch destaca este fato porque antes da lei de Caio Graco esta era uma medida excepcional aplicada nas épocas de maior carestia. O caráter ordinário desta medida garantia aos proletarii a sua parte no saque às terras estrangeiras promovido pelo exército romano. Mas a nobilitas não podia fazer concessões ao povo em termos de participação política e defesa de um Estado camponês romano. A nova aristocracia romana, nascida da fusão da velha aristocracia patrícia com os plebeus ricos, da luta entre patrícios e plebeus, e senhora de todo o mundo mediterrânico e não apenas de uma cidade-Estado, passara a se sustentar do sangue e suor dos milhares de escravos trazidos de outros países como prisioneiros de guerra e da exploração das províncias, nascida das guerras contra Cartago, quando fez sua primeira província, a Sicília. A nobilitas patrício-plebéia era uma aristocracia ainda mais belicista e imperialista, governante de um império de estrutura bastante complexa e que contava com uma intensa circulação de mercadorias e uma administração crescentemente sofisticada. Uma oligarquia composta pelos ricos e proprietários das duas antigas ordens explorava agora todos os recursos do império em seu benefício e relegavam para segundo plano as necessidades de homens livres e pobres na nova Roma. No contexto do século II a.C. o Senado da República servia para salvaguardar as posições conquistadas nas relações internacionais e no âmbito interno pela nobreza senatorial. Sendo assim, a resposta do Senado à agitação política do movimento reformista foi o senatus consultum ultimum.
Novos confrontos políticos, agora entre facções políticas delimitadas e organizadas, marcando a divisão da classe dominante por grupos de interesses e base social, os optimates e os populares, aconteceram no período de 103 a 100 a.C. Segundo Norma Musco Mendes, os Populares eram aqueles que “através de programas de reformas buscavam o apoio do povo” e os Ótimos (Optimates) eram os que tinham como objetivo central “manter ou restaurar o poder do Senado, associando a existência de um Senado poderoso à manutenção da liberdade republicana” (MENDES, 1988, p. 63-64). Estas duas facções surgiram como conseqüência direta do assassinato dos irmãos Graco pela nobreza senatorial. Um grupo de adeptos tornou-se o continuador do trabalho dos reformadores, tendo tomado o nome de populares ou defensores do povo e as medidas propostas por Caio Graco serviram de base para o programa da recém-surgida facção popular e em reação a este novo movimento organizado dos reformistas, a facção senatorial passou a autodenominar-se os optimates.
Caio Mário foi um dos maiores expoentes da facção popular. Ele era um homo novus e se notabilizou como um dos maiores generais e cônsules da história da república romana. Ao defender a Itália contra a invasão dos cimbros e teutões no ano de 102 a.C., Caio Mário teve um enorme reconhecimento popular, tendo sido conferido a ele o cognome de “terceiro fundador de Roma”, sendo os outros dois o lendário Rômulo, fundador de Roma, e Marco Fúlio Camilo, o destruidor de Veios (396 a.C.), que reconstruiu Roma depois da invasão dos gauleses (387-386 a.C.). Foi durante a guerra com os cimbros que Mário realizou a reforma do exército que permitiu que os proletários sem bens (capite censi) fizessem parte do exército romano, sendo equipados pelo Estado. Foi nessa conjuntura que combinou uma das mais graves guerras externas da história de Roma e uma das mais importantes revoltas de escravos, a Segunda Guerra Servil da Sicília (104-101 a.C.) que se constituiu o exército profissional no lugar do exército de camponeses-cidadãos-soldados, base material da República romana, sendo a nova força militar também uma nova e decisiva força política.
A crise política e social crônica de fins da República só teve solução com o projeto cesarista de governo. Este representou um projeto conservador, corporificado na aliança forjada entre o César, o Senado e o Exército, com o respaldo das massas. Esta aliança conservadora e a afirmação desta alternativa societária reconfiguraram o aparato político-administrativo para ajustá-lo às novas necessidades do império mediterrânico e do sistema social baseado na elevada concentração fundiária e na escravidão-mercadoria empregada em larga escala como modelo econômico e social hegemônico. As mudanças processadas no aparato político-administrativo de Roma relacionavam-se com a consolidação de elementos que estabeleciam um domínio oligárquico, de homens ricos e possuidores de terras, membros da aristocracia ou não, com muitos libertos grandes proprietários de terras, mas com um inegável predomínio da nobreza senatorial no que se refere à condução dos negócios de Estado e direcionamento da máquina pública para a consecução de seus interesses e objetivos.
O consenso aristocrático tomou forma no regime monárquico. A tendência exclusivista da nobreza senatorial romana prevaleceu, tendo os senadores, porém, de ceder o monopólio do poder político e depositar na figura do César a autoridade que antes era sua. Esta alternativa era a que melhor preservava os privilégios sociais conquistados pela nobilitas e promovia o ajuste perfeito das instituições políticas às condições econômicas vigentes. As convulsões políticas e sociais dos séculos II e I a.C. tiveram fim com o Principado de Augusto. Araújo destaca os elementos que conduziram ao advento do Principado, como a forma político-jurídica capaz de atender aos reclamos dos variados grupos sociais:
“A revolta de escravos liderada por Espártaco e a Guerra Social sinalizaram para as classes dominantes que o sistema escravista e, inclusive, as relações com outros segmentos sociais – os italianos, os homens livres e pobres – deveria, para ser mantido, sofrer alguns ajustes: os populares deveriam receber mais atenção a seus reclamos, daí a política imperial de “panis et circenses”; os escravos deveriam ser mais controlados, cerceados em seus movimentos, de modo a evitar revoltas, mas, por outro lado, a sanha dos senhores deveria ser coibida pelo Estado para que não houvesse exacerbação de ânimos e, consequentemente, rebeliões; os italianos deveriam ter suas reivindicações atendidas, e serem integrados, e foram atendidos antes mesmo do Principado. (...) (ARAÚJO, 1999, p.206)
            O impacto dessas revoltas na vida romana pode ser notado pela legislação aprovada no período do regime imperial que regulava as relações entre amos e servos. O imperador Adriano aprovou uma série de leis que favoreciam os escravos, como a restrição do uso da tortura para extrair informações dos escravos, a proibição da venda de um escravo, sem razão, para uma escola de gladiadores ou para um bordel e foi ainda com Adriano que os ergástulos, as prisões dos escravos, foram abolidos (MASSEY; MORELAND, 1978, p. 56).
            A nova máquina estatal funcionava como um mecanismo político-ideológico de dominação social e de estabilização política da sociedade romana.  A situação de Guerras Civis, Guerras Servis e Guerra Social colocavam em risco a unidade do tecido social romano. A monarquia militar-republicana, surgida da crise do século I a.C., apresentou também um novo discurso ideológico. O controle das forças armadas era fundamental para o exercício efetivo do poder e era a peça essencial no jogo político. No entanto, sem um novo discurso que refletisse a nova conjuntura social, dificilmente seria possível estabelecer este novo domínio em bases sólidas. O estoicismo foi uma das vertentes filosóficas que funcionaram como parte desse mecanismo de dominação político-ideológica do regime imperial. O reconhecimento da humanidade dos escravos era parte integrante desse discurso, que se popularizou bastante no século I d.C., durante o Alto Império. É impossível desconsiderar o peso das grandes revoltas servis do período republicano na constituição de um novo paradigma sobre a escravidão, que pode ser constatado nos escritos de Sêneca:
“Eles são escravos”, as pessoas declaram. Não, eles são homens. “Escravos”. Não, eles são despretensiosos amigos. “Escravos”. Não, eles são seus camaradas-escravos, se refletir que a fortuna tem direitos iguais tanto sobre escravos como sobre homens livres.” (SÊNECA, Epistulae 47.I, IO (cf.17)
           
As grandes rebeliões servis e a crise do paradigma escravista republicano

            Um dos maiores ideólogos representantes daquilo que chamaremos deparadigma escravista republicano foi Catão. Ao contrário dos escritores do período do Principado, durante o período republicano tanto o tratamento conferido na prática aos escravos quanto o discurso ideológico – mesmo havendo exceções – partia da premissa de que o escravo era semelhante a um animal e sua única função, a única razão de sua existência, era proporcionar lucro e bem-estar ao seu amo. Catão era o porta-voz desta tendência dominante na República. O escravo era, para ele, antes de mais nada, uma propriedade; e um instrumento de produção destinado a retirar do solo a riqueza do proprietário rural. Na passagem a seguir, temos uma boa síntese desta concepção do escravo como mera mercadoria:
“O senhor (pater familias)...quando for informado, deve fazer as contas dos trabalhos e das diárias; se o trabalho não aparece, se o capataz diz que fez o melhor possível, mas os escravos estiveram doentes, fez mau tempo, que alguns escravos fugiram, que fez trabalho obrigatório para o Estado, quando tiver dito todas estas coisas, faça-o voltar às contas dos trabalhos e das diárias... Quando tiver sabido, corretamente, o que deve ainda ser feito, mande-as fazer, checar as contas de prata e trigo e do que foi preparado como forragem, as contas do vinho e do azeite, o que se vendeu, do que se obteve, do que sobrou, do que há ainda à venda, que os empréstimos feitos sejam cobrados; o que sobrou deve ser mostrado; se falta qualquer coisa, compre; se sobrou, venda; os trabalhos a serem arrendados devem ser arrendados; deve deixar por escrito quais trabalhos devem ser feitos por locação e quais não. Examine o gado, faça um leilão: venda o azeite, se o preço for bom, vinho, o trigo que sobrou, os bois velhos, gado em mau estado, lã, couro, carro velho, ferramentas velhas, os escravos velhos ou doentes e tudo o que sobrar, venda; o senhor deve ser um vendedor e não um comprador.”(CATÃO, De Agri Cultura, 2, I-7)
            Nesta comunicação, tomamos de empréstimo os conceitos elaborados por João José Reis acerca das fugas-rompimento que manifestaram o “não quero” dos escravos, a sua inconformidade com o cativeiro, e que o simples fato de se rebelarem já evidenciava uma ruptura com o paradigma ideológico existente, mesmo que parcial, mas sempre forçando a uma reelaboração teórica ou a um aumento da repressão como mecanismo de controle social; neste caso, tal como Reis chamou de paradigma ideológico colonial aos valores da sociedade escravista brasileira que funcionavam como o principal mecanismo dificultador das fugas e das revoltas (REIS, 2009, p. 66), chamaremos de paradigma ideológico republicano ou paradigma escravista republicano os valores da Roma republicana e sua crítica também foi feita na prática social pelas rebeliões que eclodiram nos últimos séculos da República. A excepcionalidade dessas revoltas escravas pode ser explicada pelos fatores limitadores estruturais e conjunturais para a sua ocorrência, havendo levantes de escravos sempre que a oportunidade surgia, evidenciando que não existia um controle ideológico absoluto dos servos e nem o seu consentimento. Nas relações particulares, privadas, entre um determinado senhor e um determinado servo possivelmente devia ser percebido que os escravos não eram naturalmente inferiores, bem como constatada a sua humanidade, mas não no discurso oficial e público. No entanto, isto mudaria com as grandes insurreições escravas que foram de tal monta que produziram mudanças na política social da classe dominante para as classes subalternas e condicionaram o desenvolvimento ulterior do modo de produção escravista, com novos mecanismos de regulação e o arbitramento do Estado nas relações sociais. Essas grandes revoltas de escravos tiveram também uma influência importante sobre o fim da República e o advento do Principado, senão de maneira direta e decisiva, pelo menos de uma maneira indireta, como forma de contenção daqueles que eram a principal força produtiva da economia romana. Desse modo, a mobilização política dos escravos, a manifestação de sua humanidade na cena pública, não pôde ser ignorada nem ocultada. Intelectuais orgânicos da classe dominante romana como Plutarco deixaram escapar vez ou outra os elementos que permitem a crítica do paradigma escravista republicano:
“Esta foi a mais dura batalha de todas. Ele (Crasso) matou doze mil e trezentos, e apenas dois deles foram encontrados com ferimentos nas costas: todos os outros ficaram firmes em seus postos e morreram combatendo os romanos.”(PLUTARCO, Crasso, Ch. 11.3)  

Revolução Política e Fuga Coletiva Insurrecional: as revoltas de Euno e de Espártaco

O líder da Primeira Guerra Servil era um escravo sírio chamado Euno. Ele era um escravo doméstico e era um fazedor de milagres, tornando-se um chefe religioso, além de chefe político e militar, organizando os escravos da Sicília contra os seus amos. A religião teve um papel fundamental nessas revoltas, pois funcionava como um programa, apontando para uma estratégia e perspectivas, uma orientação geral, partindo os rebeldes de algumas referências conhecidas e comungadas por todos, dando, assim, a necessária coesão ao grupo. Depois de consolidada a vitória, Euno foi eleito rei, intitulando-se rei Antíoco, e organizou um conselho formado pelos melhores dentre o exército rebelde, tendo sido um deles um escravo chamado Aqueu. Mais tarde, tendo o eco da rebelião ressoado em outros cantos da Sicília, alastrando-se para outras cidades a revolta servil, um ex-pirata da Cilícia, Cléão, liderou um movimento nas cercanias de Agrigento, ocupou a cidade e depois se uniu a Euno. Além destes dois generais, Euno contava ainda com dois pastores como seus lugares-tenentes, Hérmias e Zêuxis. Completando sua corte, a esposa de Euno foi feita rainha. É importante observar que os escravos rebeldes não criaram nenhuma nova forma de autoridade estatal, nenhum novo tipo de governo ou de regime político. Eles apenas reproduziram as formas conhecidas de governo e o tipo de governo conhecido por eles e talvez considerado como legítimo e até mesmo o melhor era o sistema da monarquia helênica oriental, adotado, então, no novo governo da Sicília. Sendo assim, os escravos tomaram o poder, isto é, assumiram o controle da ilha e estabeleceram um reino próprio, um governo autônomo, mas sem inovar, sem revolucionar as formas políticas existentes. Diodoro explica as razões da escolha de Euno como chefe de Estado:
“(...) Em seguida, Euno foi eleito rei. Isto não se deveu ao fato dele ser particularmente corajoso ou que tenha se destacado como comandante, mas simplesmente por ser um fazedor de milagres e por ter iniciado a revolta (...)”(DIODORO, 14)
            Os escravos rebeldes chegaram a escravizar os seus antigos senhores e elementos da população livre que detinham conhecimentos estratégicos para sua organização político-administrativa e político-militar, como homens que fossem capazes de fabricar armas:
“(...) Estabelecido como senhor dos rebeldes em todos os assuntos, ele convocou uma assembléia e matou as pessoas de Enna que haviam sido capturadas, exceto aqueles que eram hábeis em fazer armas; ele forçou-os a realizar seu trabalho acorrentados. (...)” (DIODORO, 15)         

Esta insurreição escrava teve um impacto sobre outras comunidades, províncias e propriedades com trabalhadores escravos; somente a destruição do exército rebelde da província da Sicília poria fim à onda de insubordinação desencadeada por esse conflito. A repressão que se seguiu serviu para incutir o medo nos demais escravos do império, impedindo que ocorressem outras revoltas. Este fato foi de fundamental importância, pois o insucesso das revoltas que eclodiram na esteira da rebelião siciliana e o retrocesso do movimento, marcando um recuo da reação servil contra a opressão romana levaram ao isolamento dos rebeldes da ilha da Sicília e à sua conseqüente derrota. Como os escravos não eram uma classe para si e não possuíam uma organização que ultrapassasse o nível local (as revoltas tinham um caráter local, restritas a um espaço físico, limitadas a uma região qualquer, não havendo unidade entre os vários processos), não foi possível articular um amplo movimento pela libertação dos escravos ou uma frente de resistência contra a opressão romana. Assim, mesmo sendo possível forjar a unidade entre os escravos de um mesmo senhor, numa mesma propriedade, ou de uma mesma região ou província, esse caráter local mostrava-se uma barreira intransponível no processo de enfrentamento com a classe senhorial romana, itálica e siciliana. Esta divisão existente entre os próprios escravos, que, não só não tinham uma consciência de classe, como também os meios de comunicação e transporte que possibilitassem materialmente esta articulação maior entre os servos das distintas províncias facilitaram a repressão. Diante da inexistência de uma alternativa societária, da impossibilidade de uma solução revolucionária para o escravismo antigo, os movimentos de resistência tendiam a operar com as mesmas idéias, reformulando-as, talvez, com base em outras tradições, locais ou estrangeiras, mas, de qualquer modo, conservadora e sem uma perspectiva transformadora.
A fase final da guerra foi marcada pela contra-ofensiva romana:
“Foi nesta ocasião que o irmão de Cléão, Comano, foi capturado, tentando escapar da cidade sitiada. No fim o sírio Serapião traiu a cidadela e o governador foi capaz de trazer sob seu controle todos os fugitivos na cidade. Ele os torturou e depois os atirou de um penhasco. De lá ele foi para Enna, a qual ele sitiou da mesma maneira; ele forçou os rebeldes a ver que suas esperanças tinham chegado a um beco sem saída. Seu comandante Cléão veio para fora da cidade e lutou heroicamente com uns poucos homens até que os romanos foram capazes de mostrar o seu cadáver coberto de feridas. Esta cidade também foi capturada através da traição, até porque ela não poderia ter sido tomada nem pelo mais poderoso exército. Euno levou sua escolta de uns mil homens e fugiu de uma forma covarde para uma região onde havia muitos penhascos. Mas os homens com ele perceberam que eles não poderiam evitar seu destino, pois que o governador (cônsul) Rupilius já estava indo na direção deles, e eles decapitaram uns aos outros com suas espadas. O fazedor de milagres Euno, o rei que tinha fugido por sua covardia, foi arrastado para fora das cavernas onde ele estava se escondendo com quatro serviçais – um cozinheiro, um padeiro, um homem que o massageava no banho e um quarto que costumava entretê-lo quando ele estava bebendo. Ele foi posto sob custódia; seu corpo foi comido por uma multidão de piolhos, e ele terminou os seus dias em Morgantina na maneira apropriada por sua vilania. Em seguida, Rupilius marchou através de toda Sicília com uns poucos soldados selecionados e libertou-a de todo vestígio de bandos de bandidos mais cedo que o esperado” (DIODORO, 20-23)
O beco sem saída das sociedades antigas pode ser visto como o fator estrutural determinante para a derrota de todas as rebeliões servis. Serapião traiu os seus companheiros, cedendo ao desespero, e permitiu que as tropas romanas entrassem na cidade de Tauromênio. O mesmo ocorreu na cidade de Enna, quando outro escravo traiu o movimento também. Antônio Gramsci foi o teórico marxista que melhor elaborou sobre a função desarticuladora da ideologia dominante nas revoltas dos subalternos:
“(...) Os grupos subalternos sofrem sempre a iniciativa dos grupos dominantes, inclusive quando se rebelam e se levantam. Na realidade, inclusive quando parecem vitoriosos, os grupos subalternos se encontram em uma situação de alarma defensivo (...)” (GRAMSCI, C.XXIII, R. 191-193)
Assim, partimos da compreensão desta revolta como uma insurreição popular. Entretanto, os escravos não se rebelaram simplesmente, eles derrubaram o antigo poder e assumiram o controle político-administrativo da ilha da Sicília. Este elemento de qualidade superior não foi suficiente, no entanto, para produzir uma nova sociedade. Permaneceram como realidades sociais a escravidão e a monarquia como modelo de regime político, sendo implantada pelos rebeldes após a tomada do poder. No campo do marxismo, alguns historiadores e teóricos dedicaram-se a diferenciar insurreições de revoluções e revoluções políticas de revoluções sociais. Uma revolução social ocorre quando se modifica a estrutura econômico-social de uma sociedade determinada. Isto evidentemente não se deu no caso da revolta dos rebeldes sicilianos. Mas este não é o único tipo de revolução existente na realidade para os marxistas. O conceito de revolução política é fundamental para um melhor entendimento deste evento. Um importante teórico marxista russo, Leon Trotsky, criou este conceito para diferenciar mudanças de regime político de mudanças econômicas e sociais e para caracterizar quando uma classe social substitui outra no poder, sem que a estrutura social se modifique necessariamente. A simples derrubada de um governo não configura um processo revolucionário autêntico; nem mesmo a tomada do poder quando produto da ação de uma minoria. A conquista do poder político de Estado para ser algo mais que um golpe de Estado tem que ser obra de uma classe social progressista e não de um setor reacionário ou conservador da classe dominante ou ainda de setores políticos e sociais minoritários. É claro que para que possamos chamar um movimento de revolucionário a sua ação precisa ser mais que uma insurreição. A insurreição, nesse caso, tem de ser somente o ponto culminante de um processo mais amplo e mais profundo. Isto porque podem existir insurreições que não sejam revoluções ou parte integrante de um processo revolucionário. Desse modo, o que nos permite afirmar que a Primeira Revolta de Escravos da Sicília tratou-se de uma revolução política foi a tomada do poder político de Estado e o estabelecimento de um novo governo pelos rebeldes sicilianos. A revolução escrava aparece aqui, portanto, não na forma apresentada pela historiografia stalinista, mas de forma mediada, utilizando o repertório conceitual que é patrimônio do marxismo que rompeu com o dogmatismo stalinista. Este conceito de revolução política é apresentado por Trotsky:
“O mecanismo político da revolução consiste na transferência do poder de uma classe para outra. A insurreição, violenta por si mesma, realiza-se habitualmente em curto espaço de tempo. (...)” (TROTSKY, 1978, p.184)
Na historiografia soviética, de inspiração stalinista, as revoltas de escravos, em especial a revolta de Espártaco, aparecem como verdadeiras revoluções contra o sistema escravista, sendo a causa da queda do Império Romano uma revolução de escravos, camponeses e invasores germanos, no século V d.C., tendo sido a primeira fase deste processo, que ficou conhecido como “a revolução em duas fases”, justamente a revolta dos escravos espartacanos. Desse modo, Roma teve sua derrocada pela via revolucionária, tendo os escravos antigos como protagonistas dessa revolução (ARAÚJO, 1999, pp. 234-235). Em historiadores como Misulin a interpretação histórica estava bastante impregnada de conteúdo político-ideológico. A sua análise dava justificação teórica ao combate empreendido pela maioria da direção do PCUS aos seus opositores. Assim, Espártaco teria sido o verdadeiro “líder do proletariado” e o “Grande Líder”, que teve seus planos derrotados pela indisciplina da “pequena burguesia”, representada pelos homens livres e pobres e pelos “extremistas de esquerda” Crixo, Enomau e Casto (as lideranças dissidentes do exército espartacano), que poderiam ser identificados como os “trotskistas” da oposição de esquerda (RUBINSOHN, 1987, p. 8).
A revolta de Espártaco guarda algumas similitudes, mas muitas diferenças em relação à sua antecessora. Começando por uma semelhança importante, em ambos os casos, a religião cumpriu um papel decisivo na organização dos rebeldes e na escolha dos líderes. A companheira de Espártaco era uma adivinha de Dionísio. O casal místico maior confiança aos rebeldes pela relação com os deuses e com o sobrenatural e a possibilidade de prever os eventos e de invocar os deuses para o sucesso, sendo capazes, na visão dos escravos e dos homens livres e pobres que aderiram à revolta, de conduzi-los à vitória, com o apoio dos deuses salvadores – Dionísio e Sabázio (deus filho de Júpiter e pai de Dionísio). A liderança simbólica e efetiva do gladiador trácio, casado com uma sacerdotisa de Dionísio, provinha da sua capacidade, de sua inteligência e coragem postas em destaque por Plutarco e Apiano, mas também das crenças populares da época, que o habilitavam, mais do que a qualquer outro, a ser o chefe principal do exército rebelde.
A rebelião teve início numa escola de gladiadores em Cápua, no Sul da Itália. Esta revolta logo se generalizou e aquilo que era um pequeno grupo de escravos amotinados transformou-se num verdadeiro exército servil. O levante de escravos libertos foi desde o princípio uma fuga. Os gladiadores revoltosos se refugiaram no Monte Vesúvio, ou seja, numa posição geográfica favorável, formando um tipo de “quilombo”. Fugas de escravos e formação de quilombos eram as formas básicas defugas para fora, de expressão mais radical do “não quero” dos escravos tanto na Antiguidade quanto no Novo Mundo. O Vesúvio era uma fortaleza natural inacessível e inexpugnável, constituindo uma importante base de operações para os revoltosos e um refúgio relativamente seguro para os fugitivos dos ergástulos e da morte na arena, além dos pobres da Península Itálica, que viram neste movimento, que contava com uma liderança como Espártaco, que dividia o produto dos saques de forma igualitária, como uma estratégia de sobrevivência. A perseguição empreendida pelos romanos somada ao fato dos mesmos subestimarem aquele movimento insurrecional fizeram com que os fugitivos formassem um exército e que os espartacanos percorressem toda a Itália, atendendo aos anseios daqueles que aderiam à comunidade móvel de ex-escravos e homens livres e pobres e nas diversas rotas de fuga traçadas de acordo com as possibilidades. A maior fuga de escravos da História marcou profundamente a visão de mundo da classe dominante romana. Uma fuga coletiva insurrecional dessas dimensões forçaria os proprietários romanos a irem à guerra não pela glória, mas pela própria vida. Este processo é retratado por Apiano:
“Ao mesmo tempo, na Itália, entre os gladiadores que treinavam para o espetáculo em Cápua, Espártaco, um homem da Trácia que havia servido certa vez como soldado com os romanos e que, por ter sido feito prisioneiro e vendido, encontrava-se entre os gladiadores, persuadiu a uns setenta de seus companheiros a lutar por sua liberdade ao invés de divertir os espectadores. Eles dominaram os guardas e fugiram, armando-se com clavas e adagas de algumas pessoas nas estradas e refugiaram-se no Monte Vesúvio. Ali deu acolhida a muitos escravos fugitivos e a alguns camponeses livres e saqueou os arredores, tendo como lugares-tenentes aos gladiadores Enomau e Crixo. Por repartir o botim em partes iguais, teve logo uma grande quantidade de homens.” (Apiano, As Guerras Civis, XIV, 116)
            Além dos elementos já levantados, este fragmento apresenta outras questões como a suposta atuação de Espártaco como soldado do exército romano. Assim, Espártaco, o escravo gladiador, teria aprendido no seu período de serviço militar os conhecimentos mais avançados de estratégia militar do mundo antigo – a estratégia de guerra romana. Este argumento poderia tanto ser verídico quanto uma justificação ideológica para a extrema capacidade de um inimigo tão valoroso de Roma, que derrotou seus melhores generais e tropas bem treinadas de cidadãos romanos. Os saques e a divisão igualitária dos mesmos explicavam a adesão de camponeses livres e do crescimento rápido no número de revoltosos. O igualitarismo presente em Espártaco possivelmente exerceu grande influência na sua consolidação como a principal liderança do exército rebelde, sendo mais um aspecto de sua extraordinária capacidade como organizador, sedimentando a unidade de escravos de diferentes etnias e deles com homens da plebe rural empobrecidos, itálicos livres, através de laços de solidariedade mútua. Nesse sentido, esta revolta foi mais longe na ruptura com os valores da sociedade romana, superando o paradigma escravista republicano, contestando a ideologia escravista romana, com uma organização de homens livres e iguais.
            A opção de Espártaco em sua estratégia militar de realizar uma guerra de guerrilha contra as tropas romanas possibilitou que o movimento armado resistisse por mais tempo e fosse acumulando forças, tanto numéricas quanto morais, com as sucessivas vitórias contra o exército da maior potência mundial. No entanto, esta era uma situação que não poderia se perpetuar indefinidamente e o combate em campo aberto, o enfrentamento direto entre as forças beligerantes não tardava a acontecer. Talvez se Espártaco tivesse sido bem-sucedido em seu plano de fugir para fora da Itália, sua tática tivesse sido realmente eficaz. Mas era uma tática a serviço de uma política e a não concretização da última, limitou as possibilidades de vitória a partir de uma tática de guerrilha. O prolongamento da revolta infundiu o medo na classe dominante romana, ampliou o exército rebelde, mas também levou o Senado romano a tratar a situação da maneira que era devido, reconhecendo a gravidade daqueles eventos.
O conflito chega ao fim com um desfecho trágico para os espartacanos:
“... Crasso tentou de todas as maneiras dar combate a Espártaco para que Pompeu não pudesse colher a glória da guerra. O próprio Espártaco, pensando antecipar-se a Pompeu, convidou Crasso a entender-se com ele. Quando suas propostas foram rejeitadas com desprezo, ele resolveu arriscar uma batalha, e como sua cavalaria havia chegado, avançou com todo o seu exército através das linhas do exército que lhe fazia cerco, e avançou para Brundusium com Crasso perseguindo. Quando Espártaco soube que Lúculo acabara de chegar a Brundusium da sua vitória contra Mitrídates, perdeu toda esperança e trouxe suas forças, que eram então muito numerosas ainda, para perto das de Crasso. A batalha foi longa e sangrenta, como era de se esperar de tantos milhares de homens desesperados. Espártaco foi ferido na coxa por uma lança e ajoelhou-se, segurando seu escudo à sua frente e lutando assim contra seus atacantes até que ele e a grande massa dos que com ele estavam foram cercados e mortos. O resto de seu exército entrou em pânico e foi massacrado maciçamente. Tão grande foi a matança que se tornou impossível contar os mortos. Os romanos perderam mais ou menos mil homens. O corpo de Espártaco não foi achado. Muitos dos seus homens fugiram do campo de batalha para as montanhas, onde os seguiu Crasso. Eles se dividiram em quatro grupos, e continuaram a lutar até que todos pereceram, com exceção de seis mil que foram capturados e crucificados ao longo de toda a estrada de Cápua a Roma.” (Apiano, As Guerras Civis, XIV, 120)
Keith Bradley, ao comparar as revoltas de escravos na Antiguidade clássica com as revoltas de escravos no Novo Mundo, aponta para a excepcionalidade de rebeliões escravas como a de Espártaco e a do Haiti:
“No entanto, seja numa grande escala ou num nível mais reduzido, como a conspiração do ano 24 d.C. organizada no sul da Itália por um antigo membro da guarda pretoriana, as revoltas de escravos foram muito escassas depois de Espártaco, pelo que muitos estudiosos tem considerado que não havia nenhum motivo para se sublevar. A principal falha desta tese é supor falsamente que a revolta era a única via de que dispunham os escravos e que, em sua ausência, reinava a calma. No Novo Mundo, as revoltas de escravos foram particularmente virulentas no Caribe, porém no Brasil ou nos Estados Unidos, como em Roma, foram pouco freqüentes. Na realidade, não se presencia uma revolta parecida com a de Espártaco até princípios do século XIX, quando o movimento de escravos liderado em Santo Domingo por Toussaint L´Ouverture cria o moderno Estado do Haiti. (...)” (BRADLEY, 1998, pp.137-138)
            Os escravos antigos não tinham organizações perenes, como sindicatos ou partidos, como o proletariado moderno, ou mesmo instituições e organizações políticas como as criadas pelos plebeus no curso de sua luta contra a nobreza patrícia e que se integraram ao Estado Romano. Cada luta começava do zero. Eles não tinham também intelectuais orgânicos que formulassem uma teoria e um programa revolucionários. Já vimos que, muitas vezes, era a religião compartilhada pelos escravos que funcionava como programa. Além disso, conforme Schiavone (2005, p.168), nunca existiu uma alternativa do ponto de vista produtivo, nem na teoria nem na prática. Com isso, tornava-se impossível para os escravos rebeldes transformar sua revolta numa verdadeira revolução social sem formas revolucionárias, mesmo que embrionárias, na realidade social vigente ou teorias revolucionárias que surgissem de um contexto específico e se alicerçasse numa classe social progressista ou numa aliança de classes revolucionárias e progressistas. Não existia, portanto, a possibilidade histórica de chegarem à consciência de classe e, por conseguinte, ao programa político da revolução social. Sendo assim, os escravos que se levantaram na Roma antiga desenvolveram um certo grau de consciência, que poderia ser classificado, de acordo com os conceitos forjados pelos estudiosos e teóricos marxistas, como um sentimento de classe. Nessa identidade de classe surgida do processo de luta contra a situação de escravidão dos envolvidos nas rebeliões confundia-se a consciência social com todas as influências culturais e religiosas. Todos estes elementos combinados numa situação histórica determinada, produto de uma conjuntura específica, configuravam a psicologia de classe dos escravos rebeldes. Apesar da proximidade e similaridade dos conceitos, preferimos o conceito sentimento de classe no lugar de psicologia de classe por expressar com maior exatidão o processo de experiência dos sujeitos, que formavam, nestas circunstâncias, o sujeito social da luta libertária (talvez seja um termo mais adequado diante da inexatidão do uso luta antiescravista ou revolucionária, sendo tentador de fato, mas que não corresponde à realidade). A idéia de identidade também é mais forte no conceito de sentimento de classe. O sentir da classe é um conceito que aparece primeiro em Lênin (1988, p.24) e depois é desenvolvida por Raymond Williams (1988, pp.134-135). A idéia de sentimento se relaciona com a de lampejos de consciência, mas transmite uma certa estabilidade num tempo determinado, enquanto que lampejo remete a algo episódico, explosivo. De qualquer modo, a ênfase numa definição que evidencie o caráter dinâmico e processual da realidade norteia este trabalho e aponta um caminho que nos parece mais interessante. A inexistência de uma genuína consciência de classe e o fato de os escravos antigos não terem se constituído numa classe para si não impediu que a partir de sua experiência nas lutas concretas e da exploração diária eles desenvolvessem um antagonismo em relação aos senhores e conseguiram manifestar essa oposição de forma violenta e unificada, buscando obter sua liberdade. Em nossa análise, vimos que as revoltas eram desarticuladas entre si e isto demonstra, de fato, uma ausência de uma organização em termos territoriais mais amplos, sendo rebeliões locais, que, dependendo do seu desenvolvimento, podiam estender-se para além da região onde haviam se iniciado. Porém, mesmo neste nível regional, algumas delas, chegavam a um grau de organização relativamente elevado.

Conclusão

            A contestação prática da ideologia escravista romana foi a grande vitória simbólica das insurreições escravas dos séculos II e I a.C. Se não podemos falar da substituição de uma visão de mundo que percebia os escravos como seres inferiores, podemos, ao menos, dizer que essas revoltas produziram uma fissura no paradigma ideológico vigente, que tinha suas bases na teoria da escravidão natural de Aristóteles e no discurso escravista de intelectuais romanos como Catão.
Devemos destacar que se a crise e queda do Império foram acompanhadas pela crise do escravismo antigo, a crise da República foi acompanhada de seu florescimento, da sua implantação em ritmo acelerado, gerando mudanças sociais profundas, abalando as velhas estruturas da república oligárquica. Na medida em que não existia um aparelho burocrático em todos os seus aspectos – político, jurídico, administrativo e militar – totalmente adequado para regular essa nova economia e as novas relações sociais que com ela se desenvolviam, a eclosão de uma série de conflitos que marcaram os séculos II e I a.C., sendo o último século da República marcado pelos mais graves confrontos entre os cidadãos romanos da classe dominante, especialmente, os romanos e seus aliados e os senhores e seus escravos. O Principado foi, então, um ajuste político-administrativo que correspondia às transformações econômico-sociais do período em que explodiram a revolta de Espártaco, a Guerra Social e a Conjuração de Catilina.


INDICAÇÃO BIBLIOGRÁFICA

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[1]  Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação em História Antiga da Universidade Federal Fluminense. Orientado pelo Professor Ciro Flamarion Cardoso, na dissertação de mesmo título e tema da presente comunicação.

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