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sábado, 19 de dezembro de 2015

PRISIONEIRO - CONTO DE TERROR

PRISIONEIRO

Prisioneiro

            A Grande Depressão. Não a primeira, mas a segunda. O ano de 2013 foi um ano terrível. A crise econômica chegou ao seu auge. O desemprego, a miséria e a fome devastaram o mundo. Milhões de pessoas morreram de fome. Eu sobrevivi, mas sofrendo bastante como todo mundo. Comendo uma sopa rala e um pedaço de pão por dia, morando num quarto, numa casa cheia de baratas e que, toda noite, contava com alguns roedores como visitantes regulares. Vivendo em meio aos ratos e insetos e lutando com eles pela comida escassa que havia na casa, eu resolvi ser escritor. Nada como a pobreza extrema para acabar com qualquer crise existencial. Eu queria fama e riqueza. Num mundo de individualismo, sem perspectivas de futuro e no qual o ter vale mais que o ser, o dinheiro e o reconhecimento social tornam-se não simples desejos, mas necessidades.
            A falta de dinheiro não me permitia ter um computador para escrever. Um vizinho do quarto ao lado tinha uma máquina de escrever velha e resolveu dá-la para mim. Então, eu comecei a escrever meus contos na máquina de escrever. Os primeiros contos não eram muito bons. O mercado editorial brasileiro, ainda muito restrito e limitado, também não contribuía para que um jovem escritor, pobre porém ambicioso, pudesse ter sua primeira oportunidade. Isso fez com que meus contos fossem se acumulando na gaveta da minha escrivaninha, estando sujeitos unicamente à crítica das traças. A inútil crítica das traças.
            Um amigo meu, que era poeta, não teve melhor sorte. O fato de ter ele um computador com acesso à internet, permitiu-lhe publicar seus poemas em sites. Mas quase ninguém lê poesias de poetas desconhecidos, então, estávamos quase na mesma. De vez em quando, nós nos encontrávamos para tomar um café. Trocávamos ideias sobre arte e política. Depois de duas xícaras de café (era o limite do nosso bolso), íamos para nossas casas sonhar com o dia em que nossos trabalhos seriam apreciados pelo grande público.
            Todas as noites eu me arrependia de ter largado a faculdade. Todos os meus amigos se arrependiam de terem concluído a faculdade. Não havia emprego para ninguém. E os empregos que existiam, pagavam muito mal. Percebi que contos não davam dinheiro. Eu precisava alcançar o grande público e precisava, antes de mais nada, conquistar o interesse de uma grande editora comercial. Resolvi, então, escrever um romance. Decidi escrever um romance policial. Mas eu havia escrito textos de, no máximo, dez páginas até agora. Quando eu cheguei à décima segunda página, travei. Eu não conseguia escrever mais nada. Tentei de tudo para ter ideias. Saí para ver os lugares e pessoas. Li obras de grandes autores. Tentei até plagiar. Mas nem isso eu conseguia fazer. Desisti. Os personagens eram muito ruins e os diálogos nem se fala! O romance era um lixo.
            Dois meses se passaram. Depois de um período de depressão, comecei uma nova empreitada. Talvez escrever um romance histórico. Na verdade, o desespero já era tanto, que estava quase escrevendo livro de autoajuda. Comecei a beber. Tornei-me alcoólatra. O álcool se tornou minha maior companhia nestes dias cinzentos.
            Vivemos entre leões e hienas. Predadores estão à espreita para nos devorar. A minha carne começa a apodrecer antes mesmo de eu morrer. Certa manhã, olhei para o telhado da casa e vi um urubu pousar. Ele olhava para mim. Talvez aguardasse o momento da minha queda para que pudesse se deliciar com a minha carniça. Carniceiros e vampiros dominam o mundo. Eu sou como o ratinho, que toda semana, vem dividir comigo o meu jantar especial de sábado, mordiscando o meu único bife semanal. Quando aparece uma ratazana, eu tenho que ceder gentilmente minha carne para o hóspede faminto, afinal, é até uma questão de educação.
            Café. Muito café. A cafeína é uma droga do bem. Pelo menos para mim. Tudo que me deixe mais ativo, melhore o meu raciocínio, favorece, sem dúvida, o meu trabalho. Eu estou na minha sexta caneca do dia. Já bebi mais de um litro de café, com certeza. Mas, mesmo assim, nenhum romance.
            Eu passei a manhã inteira vomitando. A consequência natural de uma noite de bebedeira. Minhas mãos estão trêmulas. Preciso tomar mais uma dose. Sento-me para escrever. Escrevo um poema. Mais um exemplo de lixo literário. Abro a gaveta e submeto aos meus críticos literários a minha mais nova produção. Talvez bebendo um pouco mais o poema se torne melhor. Pego uma garrafa de vinho e bebo no gargalo mesmo, até o fim.
            Outra manhã cinzenta e outra vez está lá o urubu olhando para mim. Sinto um leve arrepio. Volto para dentro e constato que não tenho mais nenhum dinheiro e nada para comer. Maldita crise! Mundo miserável! Vida miserável! Saio para a rua. Apesar de me sentir humilhado com a situação, eu começo a pedir dinheiro. Ninguém estende a mão. Não consigo uma moeda sequer. No final do dia, vejo um cachorro de rua, magro, pelos negros com uma mancha branca; ele está todo machucado e está babando e parece feroz, mas eu não me importo. Não mais. Percebo que deixaram um pedaço de carne para ele num potinho. Avanço sobre a carne crua, disputando com o cão o direito àquele pedaço de carne que nenhum ser humano quis. O cão vira-lata estava raivoso. Ele me mordeu mais de uma vez. Eu lhe retribuí com o mesmo gesto. Depois de ter passado por uma situação tão degradante, senti um ódio incomensurável. Aquilo despertou em mim os meus instintos mais primitivos. Tive o desejo de matar todos aqueles que tinham aquilo que eu jamais poderia ter. Eu não passava de um mendigo. Não tinha futuro, não tinha vida digna, não tinha família, não tinha amigos e não tinha o calor de uma mulher. O meu único amigo me desprezara. Estava só.
            No dia seguinte, enquanto andava pela rua, vi uma mulher rica, desfilando na minha frente. Eu não podia mais suportar aquilo. Eu não podia mais tolerar aquilo. Eu estava com um canivete no bolso. Então, eu furei a jovem mulher, bela e rica, e saí correndo. Nunca senti tanta felicidade na vida. Eu tive uma sensação de enorme prazer. Eu queria sentir aquilo de novo.
            Ao anoitecer, eu vi o policial na rua e tive inveja do poder que sua farda ostentava. Além disso, ele era uma figura detestável, reprimindo todos aqueles que fugiam do esquema, da ordem estabelecida. Eu, realmente, precisava matá-lo. Peguei um cano e o acertei pelas costas, bem na cabeça. Ele caiu no chão, sangrando muito e eu continuei a espancá-lo até que ficasse desfigurado, até que seu rosto ficasse irreconhecível.
            Finalmente, os meus contos seriam publicados. Eu estava em êxtase. O editor convidou-me à sua casa para que acertássemos os detalhes. Ele queria me conhecer e conhecer melhor o meu trabalho. Esta era a chance da minha vida. No caminho eu estava pensativo. Chegando na casa daquele homem, senti-me extremamente ansioso. Eu estava muito nervoso. Foi aí que aconteceu. Eu fui tomado por uma fúria repentina e o matei com uma faca de cozinha. Isso depois de espancá-lo e de lhe cortar dois dedos. Eu fiquei olhando para os dedos que eu cortei daquele que seria o meu futuro editor. O primeiro dedo que eu cortei, eu o fiz comer. O segundo, fui eu que comi. Eu o cortei em pedaços e guardei no congelador da minha nova casa. Comprei uma casa com o dinheiro que roubei do cofre que o velho tinha em casa. Eu arrombei o cofre e saí de lá correndo.
            Todas as manhãs, eu abria o congelador e retirava um pedaço do velho editor morto por mim. Mas isso não era o bastante. Isso não era capaz de saciar minha fome. Fui até a casa do meu velho amigo. Nós conversamos, rimos juntos e tomamos um último café. Acertei-o com um taco de beisebol. Ele caiu morto na hora e eu o comi inteiro naquele mesmo dia.
            A polícia chegou. Os vizinhos haviam feito uma denúncia, após ouvirem barulhos estranhos vindos de dentro da casa. Quando os policiais abriram a porta, lá estava eu, com a boca cheia de sangue e lambendo os ossos da vítima. Fui preso em flagrante. E agora, estou aqui nesta cela, contando esta história. O inferno é pouco para mim, eu sei, mas não me arrependo. Devore a vida antes que ela te devore, esse é o meu lema. É a lição que eu aprendi com o urubu que ia todos os dias à minha casa esperar pela minha morte para saborear minha carne depois. Por um segundo, pensei que fosse tudo um sonho, mas não, era real, a realidade mais dura que pode existir. Eu era prisioneiro de mim mesmo. Agora, sou prisioneiro numa cela e vivo os dias, esperando minha morte, e foi aí que eu descobri que eu sou aquele urubu.

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