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segunda-feira, 29 de julho de 2019

Os Três Césares, a Ascensão do Homem Comum e a Resistência Oligárquica

   Desde o início da República no Brasil as oligarquias sempre foram os principais atores políticos. Sempre colocaram as instituições republicanas a seu serviço, tanto nos períodos democráticos quanto nos períodos ditatoriais.
   Com o início da Nova República e mesmo com a promulgação da chamada Constituição Cidadã esse fato não se alterou. Mesmo a eleição do intelectual Fernando Henrique Cardoso foi uma forma de dar uma cara mais moderna às velhas oligarquias no contexto da globalização neoliberal. Mas a eleição de Lula mudou radicalmente essa situação. Lula, um homem do povo, principal liderança popular de um amplo movimento social, foi eleito diante do desgaste das oligarquias no poder, que aplicaram o programa neoliberal com o radicalismo exigido pelo imperialismo em sua ofensiva colonial na América Latina. Lula não rompeu radicalmente com o programa econômico neoliberal, mas se apresentou como a única figura capaz de mediar os conflitos sociais e trazer a estabilidade política e econômica para o país e para a região da América do Sul e Central. Com a criação do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, representantes da sociedade civil oriundos de vários grupos sociais passaram a dialogar para chegar a consensos na formulação de políticas públicas que a presidência da República encaminharia. Lula valorizou e trouxe para dentro do governo tanto representações dos movimentos sociais favoráveis ao seu governo quanto representações do meio empresarial, reformulando o pacto social brasileiro, aprofundando a democracia participativa ao mesmo tempo em que fortalecia a figura do presidente diante do povo, enfraquecendo as instituições tradicionais da República na condução da política, como o Congresso Nacional. Diante dessa hipertrofia do Executivo, que passou a abarcar o conjunto das representações diretas da sociedade civil, passando por cima dos representantes eleitos nos termos da democracia representativa, as oligarquias se entrincheiraram no Judiciário e no Ministério Público, instituições imunes ao controle democrático da soberania popular. Essa hipertrofia do Executivo em nada se assemelha com a centralização política autoritária das ditaduras varguista e militar. Pelo contrário, nunca a participação popular foi tão grande num governo da República, mesmo de forma tutelada pelas direções hegemônicas nos movimentos sindical, estudantil e popular e na esquerda partidária. Mas Lula torna sua vontade política a vontade do Estado, ampliando cada vez mais sua base de apoio entre as camadas populares. Ao término de seu segundo mandato ele era o presidente mais amado pelo povo em toda a história republicana brasileira.
   Dilma deu continuidade ao projeto lulista, mas se distanciou dos setores organizados da sociedade, em especial dos movimentos sociais. Sua estratégia foi aprofundar as políticas públicas que favoreciam principalmente os pobres, as mulheres, os setores urbanos da classe trabalhadora e a classe média urbana. Lula havia favorecido os indígenas, os negros, os pobres e os jovens, principalmente. Tanto Dilma quanto Lula investiram no desenvolvimento do Nordeste, levando vários nordestinos à ascensão social, destino antes quase que exclusivo dos trabalhadores e da classe média do Centro-Sul. Para garantir a aplicação de sua política, Dilma teve que entrar em atrito com o mercado em seu primeiro mandato. Ao cortar o diálogo com os movimentos sociais e com a classe trabalhadora organizada, Dilma teve que aprofundar a repressão. O governo federal e os governos estaduais aliados do governo Dilma passaram a reprimir de forma mais dura e até sistemática, como foi o caso do governo Cabral no Rio de Janeiro, categorias profissionais que representaram no passado a base política e social do PT. Nesse momento, começa a se gestar o Estado Policial, combinando uma política de repressão e consenso, em que a balança começava a pesar mais para o lado da coerção. O resultado dessa falta de diálogo e de construção de consensos com os setores organizados da sociedade fez com que mesmo com resultados econômicos e sociais até mais favoráveis que o governo Lula no primeiro mandato de Dilma, ela perdesse base de apoio, o que levou à inevitável crise política após sua reeleição. O golpe parlamentar chefiado por Temer, Cunha e Moro nada mais foi que uma restauração oligárquica contra o modelo de governo cesarista progressivo que se estabeleceu com o lulismo. Mas a guinada bonapartista do governo Dilma já havia feito um estrago irreversível: o chefe do Executivo passou a ter à sua disposição um aparato repressivo como nunca antes na recente democracia, especialmente com a lei antiterrorismo e com o uso da Força Nacional e das Forças Armadas contra mobilizações populares. Temer não hesita em lançar mão desses expedientes. Além disso, de nada adiantou a resistência oligárquica. Os governos Lula e Dilma se aliaram às oligarquias política e economicamente, mas quebraram o seu protagonismo político e a legitimidade de sua representação política perante as massas. Com isso, a figura do grande líder encontrou seu equivalente na extrema direita em 2018: Bolsonaro.
   Se Lula representava a ascensão do homem comum que lutava coletivamente por um futuro melhor, Bolsonaro representava o homem comum atomizado que encontra no César um fator de unificação e um porta-voz de seus desejos e vontade. Se Lula representava os homens e mulheres comuns da classe trabalhadora organizada e Dilma os homens e mulheres comuns da classe trabalhadora desorganizada, Bolsonaro surge como representante dos homens e mulheres comuns da classe média, que passou a nutrir um profundo ressentimento diante da ascensão social daqueles que desde o tempo colonial estavam destinados a viver abaixo dos elementos da classe média branca. A ascensão dos negros e pobres, mesmo que tímida, levou a que a classe média branca projetasse todo o seu ressentimento e seu ódio naqueles que criaram as políticas sociais responsáveis por essa mudança social. Foi assim que a principal figura Anti-PT chegou ao poder pelos braços do povo. Bolsonaro é o terceiro César, o César reacionário, o líder da revolução fascista contra os governos de Frente Popular. Sua atitude frente às instituições republicanas dominadas pelas oligarquias é ainda mais agressiva, numa interpretação errônea do que representou a ditadura militar. Os homens dos porões da ditadura que depois se aliaram ao setor do crime organizado que se originou dos grupos de extermínio jamais compreendeu o que foi a ditadura militar realmente. Os generais nunca quebraram o poder oligárquico. O conservadorismo das Forças Armadas não seria capaz de consentir com isso. O Congresso e o Judiciário seguiram funcionando normalmente, mesmo que de forma tutelada. A centralização do poder nas mãos dos generais representou um afastamento do povo do processo político, não das oligarquias. Bolsonaro, ao contrário, se apóia em setores populares conservadores e reacionários contra a esquerda e os movimentos sociais, mas também contra as velhas oligarquias corruptas. A grande mídia, porta-voz das oligarquias, ajudou a impulsionar o golpe parlamentar conservador e depois a contrarrevolução fascista com o golpe eleitoral e agora se vê ameaçada pelos métodos de banditismo do grupo mafioso que chegou ao poder. Bolsonaro, o menor dos Césares, é chefe de um setor do lumpesinato com sólidas ligações com o aparato repressivo de Estado. Do impeachment às eleições fraudadas, a democracia e a Constituição foram sendo esvaziadas de seu conteúdo e se tornaram ocas, meramente formais. Agora a classe média deseja passar por cima das instituições, coroando seu líder, o líder fascista, como o único detentor de todo o poder, fazendo do poder pessoal do líder a própria vontade do Estado, sem mediações  e negociações, numa interpretação radical do legado da ditadura, a interpretação dos homens dos porões da ditadura, não daqueles que elaboravam as políticas, mas daqueles que prendiam, torturavam e matavam os opositores políticos e demais alvos do regime militar.
   O longo cesarismo no poder da República enfraqueceu as bases do poder oligárquico. Não faz o menor sentido fazer o tempo voltar e defender o cadáver insepulto do pacto social construído com a redemocratização. A democracia representativa de base oligárquica que emergiu a partir de 1988 está morta. A única esperança para a maioria dos brasileiros é aprofundar a estrada aberta pelo cesarismo: colocar o poder efetivamente nas mãos do povo, sem necessidade de um líder carismático para guiá-lo, realizando a revolução democrática que erguerá a democracia participativa com o fortalecimento dos mecanismos de democracia direta. As oligarquias cederam protagonismo aos Césares e os Césares devem ceder lugar à plebe, como única saída possível para o impasse da nossa sociedade, que dança agora no abismo que separa a civilização da barbárie, uma sociedade que viu o seu tecido social se romper; a ruptura do tecido social da sociedade brasileira só pode ter dois desfechos: ou a guerra civil ou a revolução democrática. No mundo inteiro, a conversão da luta política em luta militar ao contrário de resolver os impasses históricos e sociais como no passado só fez aprofundá-los. Se o Brasil não quiser se tornar uma Síria, com uma guerra civil que no final será uma luta entre dois grandes aparatos burocráticos e o povo ficando na condição de vítima de uma pura luta por poder, é preciso unir as forças populares na tarefa de construir o processo de derrubada do governo fascista que pretende erguer uma ditadura pior do que todas as que já tivemos antes ou mergulhar o país numa guerra civil interminável. Nada virá da anacrônica resistência oligárquica. Grande Mídia, Parlamento, Judiciário, tudo isso virou pó na insurreição popular que foram as Jornadas de Junho de 2013, com todas as suas contradições, com a disputa das ruas entre a esquerda e a extrema direita, ficando a velha direita liberal e conservadora paralisada diante da explosão da luta de classes. Agora, somente com a mobilização nas ruas e nas redes sociais, com as denúncias aos organismos internacionais e à imprensa internacional e com a unidade da esquerda nas eleições municipais de 2020 será possível superar os planos sombrios dos fascistas. Na Europa foi a esquerda que deteve a ascensão da extrema direita nas eleições espanholas e nas eleições europeias e não um centro liberal moribundo. A agonia da nossa democracia também é a agonia do poder oligárquico. Deixemos os mortos com os mortos. E se agonia quer dizer luta, então é preciso lutar até o fim contra a morte. Não somente a morte da nossa democracia, mas o próprio adoecimento da sociedade, cada vez mais envenenada com ódio em suas mentes e agrotóxicos em sua comida. É preciso tirar todo o veneno. Nada vai curar só com o tempo. Essa estratégia de deixar o tempo agir foi o que nos levou à situação em que estamos, justamente por não ter havido um ajuste de contas do país com o seu passado ao final da ditadura militar. É preciso seguir em frente.

Rafael Rossi

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

O MITO DE PROMETEU: DO FOGO NASCEM OS HOMENS



Contavam os gregos antigos que no início dos tempos, os seres humanos e os deuses viviam juntos e os humanos não conheciam as doenças, a necessidade do trabalho, a velhice e a morte. O titã Prometeu foi encarregado do sacrifício que determinaria o tipo de vida próprio dos homens e o tipo de vida próprio dos deuses. Nesse sacrifício, Prometeu tentou favorecer os homens dando-lhes a melhor parte do boi abatido, o que era comestível no animal sacrificado, mas no momento em que os homens comeram a carne de um bicho passaram a sentir fome e a necessitar de alimento. Zeus, o rei dos deuses, ficou furioso com Prometeu por ter o titã tentado enganá-lo em favor dos homens; por isso, como vingança, deixou de conceder com seus raios o fogo celeste à humanidade.
Zeus reinava no monte Olimpo, a morada dos deuses. Os deuses olimpianos chegaram ao poder depois de vencer a guerra contra os titãs, uma raça de gigantes que habitava a terra antes da criação do homem. Os titãs eram os deuses primitivos e aqueles que foram derrotados por Zeus na luta pelo poder foram aprisionados no Tártaro, uma prisão subterrânea abaixo do mundo dos mortos, o reino de Hades. Outros titãs foram castigados de outras maneiras, como Atlas, que foi condenado a sustentar o céu em seus ombros. Zeus repartiu com seus irmãos o domínio do universo, ficando Poseidon com o domínio do mar e Hades com o domínio do mundo dos mortos. O poderoso deus dos raios ficou com o domínio do céu.
O titã Prometeu se rebelou contra a autoridade de Zeus e roubou o fogo dos deuses no céu para dá-lo aos homens. Os humanos passaram a ser os únicos animais na terra a compartilhar com os deuses a posse do fogo. De todos os animais na Terra, os homens eram os mais fracos, pois, no momento da criação, uns animais ganharam agilidade; outros, força; outros, asas; outros, garras; e nada restou para o ser humano. Mas com o dom obtido pelo crime de Prometeu contra a vontade do rei dos deuses, o homem se tornou capaz de criar armas, de se aquecer no frio e de dominar os outros animais.
A aventura de Prometeu, que foi até o céu só para roubar o senhor do universo e favorecer novamente os homens não ficou sem punição. Dessa vez, Zeus puniu mais uma vez os homens, e agora com uma punição definitiva, e castigou severamente o titã rebelde. Zeus criou Pandora, a primeira mulher, como forma de punir os homens. Pandora era curiosa e ao se deparar com um jarro fechado resolveu abri-lo, mas nesse jarro estavam guardados todos os males que até então não existiam entre os humanos; havia pragas para o corpo e para o espírito e a vingança, a inveja, as fadigas, as doenças, o trabalho árduo, a velhice e a morte se espalharam por toda a parte; o sofrimento e a morte se tornaram parte da condição humana. Quando Pandora fechou o jarro somente a esperança permaneceu lá no fundo e até hoje os homens vivem com esperança e medo sem saber sobre o futuro, tentando adivinhar o que pode acontecer.
Desta vez, o crime de Prometeu não passaria impune. O titã amigo dos homens foi punido pelo rei dos deuses, sendo acorrentado num rochedo do monte Cáucaso e tendo o seu fígado comido todos os dias por uma águia; o seu fígado se regenerava e era novamente comido no dia seguinte. Mas ele permaneceu firme diante do seu destino trágico e terrível à espera de um dia ser salvo por alguém que amasse tanto a humanidade quanto ele. Prometeu criou os homens como eles são hoje: um ser situado entre os animais e os deuses. Ele ensinou a civilização e as artes para a humanidade. Ninguém favoreceu tanto os seres humanos quanto Prometeu. Somente muitos e muitos anos depois, com o nascimento de Hércules, o maior herói de todos os tempos, que os homens encontrariam um novo protetor igual ao titã perseguido pela fúria de Zeus. Prometeu se rebelou contra a opressão e a tirania e invadiu os domínios do deus dos raios para trazer aos seres humanos a graça divina que faria do homem a criatura mortal mais poderosa de todas.






Rafael Rossi

DEUSES, HERÓIS E SUPER-HERÓIS



O universo de deuses e heróis da mitologia grega serviu de inspiração para as narrativas que serão apresentadas em sala de aula. Para os gregos antigos, a imortalidade traçava uma fronteira entre os deuses e os homens. Os deuses gregos eram imortais. De acordo com o historiador Jean-Pierre Vernant, “é pela voz dos poetas que o mundo dos deuses, em sua distância e sua estranheza, é apresentado aos humanos”. As narrativas de Homero e de Hesíodo sobre os seres divinos funcionaram como modelos de referência para os autores que vieram depois deles. As obras da poesia épica serviram como instrumentos de conservação e comunicação do saber. Diz Vernant: “A atividade literária, que prolonga e modifica, pelo recurso à escrita, uma tradição antiquíssima de poesia oral, ocupa um lugar central na vida social e espiritual da Grécia”. Tanto a poesia épica quanto os contos populares estiveram ligados no início a uma tradição oral. As histórias mais antigas já contadas têm suas origens em sociedades que ainda não conheciam a escrita. E até hoje, o ato de contar histórias, reais ou lendárias, se faz por meio da oralidade e na presença do outro, na maioria das vezes.
As histórias mais famosas de todos os tempos foram (e são ainda) as histórias de heróis. Vernant diz que os heróis “pertencem à espécie dos homens e, como tais, conheceram os sofrimentos e a morte. Mas, por toda uma série de traços, distinguem-se, até na morte, da multidão dos defuntos comuns. Viveram numa época que constitui, para os gregos, o ‘antigo tempo’ já acabado e no qual os homens eram diferentes daquilo que são hoje: maiores, mais fortes, mais belos”. Alguma semelhança com os nossos super-heróis de hoje? Talvez uma: nas nossas histórias de super-heróis, eles são nossos contemporâneos. Mas, tirando isso, são como os heróis da mitologia grega, belos, fortes, mais inteligentes e melhores que os demais mortais em vários aspectos. Continuando sobre esse tema do herói, escreve Vernant: “Mesmo sendo homens, sob vários pontos de vista esses ancestrais aparecem mais próximos dos deuses, menos separados do divino do que a humanidade atual. Nesse tempo passado, os deuses ainda se misturavam de bom grado aos mortais, convidavam-se para a casa destes, comiam às suas mesas em refeições comuns, insinuavam-se até mesmo às suas camas para unir-se a eles e, no cruzamento das duas raças, a perecível e a imortal, gerar belos filhos. Os personagens heroicos cujos nomes sobreviveram e cujo culto era celebrado em seus túmulos apresentam-se muito frequentemente como o fruto desses encontros amorosos entre divindades e humanos dos dois sexos”. Desse modo, os chamados semideuses eram filhos de mortais com deuses e deusas. Alguns homens também podiam ser elevados ao status de herói. Além das figuras lendárias, dos primeiros fundadores de colônias e de personagens que adquiriram um valor simbólico exemplar aos olhos dos habitantes de uma determinada cidade grega, havia também heróis anônimos, como escreve Vernant: “Existem heróis anônimos, designados apenas pelo nome do lugar onde foi estabelecido seu túmulo; é o caso do herói de Maratona”.
A Mulher-Maravilha talvez seja a super-heroína mais inspirada nas narrativas da mitologia grega. No livro de Matthew Manning, a Mulher-Maravilha é descrita assim: “Metade humana e metade deusa, Mulher-Maravilha é filha de Zeus e Hipólita – rainha das Amazonas – e foi treinada desde o seu nascimento para ser uma representante de Themyscira para o mundo humano”. Quer dizer, a super-heroína é um exemplo clássico de mito recriado para a modernidade, é uma atualização do mito das amazonas para a época contemporânea. Não foi por acaso que a Mulher-Maravilha se tornou um símbolo feminista nos dias de hoje. Ela faz questão de lembrar que as mulheres não são o sexo frágil que o discurso dominante afirma. As míticas amazonas são guerreiras habilidosas e corajosas. A semideusa é o maior exemplo de adaptação dos mitos gregos para as narrativas heroicas de nosso tempo.
Mas os super-heróis do presente não permaneceram completamente presos aos paradigmas clássicos. O grupo de heróis mutantes, X-Men, que contou com Chris Claremont por mais de quinze anos como argumentista das histórias desses super-heróis tem um tom bem diferente, inclusive nas definições do que é ser herói e do que é ser vilão. Em uma entrevista publicada em 1995 na revista X-Men no Brasil, o autor fala sobre o personagem Magneto: “Magneto não pode ser definido em termos de herói ou vilão. Ele é um homem com um projeto de vida, uma ideologia. Ele é alguém que, se você quiser uma analogia mais contemporânea, está para Malcolm X [...] assim como Charles Xavier está para Martin Luther King [...]. Ele não confia no mundo. Ele crê que confiar na humanidade é pedir para ser traído por ela. [...] Da perspectiva de alguém que passou sua juventude num campo de extermínio em Auschwitz, ele é extraordinariamente amargo e cético”. Sendo assim, numa sociedade tão complexa como a nossa, a complexidade e a ambiguidade dos personagens são cada vez mais acentuadas.
Considerando que a moda dos filmes de super-heróis tem levado uma massa gigantesca de pessoas aos cinemas no mundo todo, batendo esses filmes todos os recordes de bilheteria, é preciso trazer isso para a sala de aula, e é nesse contexto que as narrativas que vamos ver sobre os mitos gregos e romanos e sobre algumas das maiores personalidades históricas da Grécia e da Roma antigas se inserem.
Referências:
CLAREMONT, Chris. “Entrevista com Chris Claremont”. In: X-MEN n° 77: O fim de uma era, pp.48-52. São Paulo: Editora Abril Jovem, 1995.
MANNING, Matthew K. O Mundo da Mulher-Maravilha. Rio de Janeiro: Ediouro Publicações, 2017.
VERNANT, Jean-Pierre. Mito e Religião na Grécia Antiga. Tradução: Joana Angélica D´Avila Melo. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2006.




MITOS E NARRATIVAS



A contadora de histórias Bia Bedran escreveu, certa vez, o seguinte: “Contando sua própria história e a do mundo, o homem vem se utilizando da narrativa como um recurso vital e fundamental. Sem ela a sociabilidade e mesmo a consciência de quem somos não seria possível. O conto é uma memória da comunidade, em que encontramos lugares diferentes de olhar e ler o mundo ao praticarmos a arte da convivência”. Quem nunca parou para ouvir histórias de outro tempo contadas pelos avós ou outras pessoas mais velhas? Isso é uma forma de se conectar o passado e de compreender o presente a partir do relato dessa testemunha ocular dos fatos que se encontra diante de nós na figura da pessoa mais velha. Nós mesmos estamos sempre contando histórias, para nossos amigos, familiares e até pessoas estranhas que conhecemos na rua ou na internet. Nesse sentido, é pela comunicação que o homem se torna esse animal social que somos.
O arqueólogo Pedro Paulo Funari escreveu em um de seus livros sobre a arte de contar histórias e a narrativa histórica: “De fato, o homem é um animal que gosta de contar (e de ouvir) histórias. O que são os romances e contos, as telenovelas e os filmes, os desenhos animados e as peças de teatro, se não narrativas? Também o passado só adquire forma como uma narrativa, em um entrelaçar de dados e argumentos sobre a sucessão dos acontecimentos. Quanto mais recuamos no passado, tanto maior será a importância do relato, quase como se fosse uma viagem, imaginada e contada pelos estudiosos”. Nesse sentido, construímos nossa identidade, damos sentido às nossas vidas, direção aos nossos desejos, compreendemos os outros e a nós mesmos por meio das várias narrativas que lemos, ouvimos e vemos o tempo todo. Quem nunca viu um filme que lhe marcou? Quem nunca ouviu uma música que fez com que se emocionasse? A vida é assim, essas várias histórias que lemos, vemos e ouvimos fazem parte de nós e definem quem somos. Também é próprio dos seres humanos querer compartilhar suas experiências; colocamos nossas fotos em redes sociais, falamos com os colegas aquilo que fizemos no final de semana e até podemos inventar histórias. De fato, muitas das narrativas mais marcantes de nossas vidas são histórias inventadas. As obras de ficção do cinema e da TV marcaram nossa infância, adolescência e juventude. Nós sofremos e nos alegramos junto com os personagens dessas histórias. Nós torcemos por eles, porque nos identificamos com os seus desafios, sofrimentos e tragédias. Mas a imaginação não fica restrita à arte e às histórias inventadas. Também a ciência e a filosofia contam, muitas vezes, com uma boa dose de imaginação. Quando estudamos sobre a pré-história da humanidade ou sobre os povos da Antiguidade, temos que tentar imaginar como viviam, como eram, como era o seu cotidiano, eles não tiravam selfies, não escreviam sobre suas vidas, não as pessoas comuns, não como nós fazemos hoje. Tudo o que podemos fazer é, a partir dos vestígios deixados por eles, imaginar como viviam, amavam e lutavam. Travamos um diálogo vivo com aqueles que morreram mudos, que foram silenciados pela força irresistível do tempo. Somos nós, com nossa imaginação e com nossas perguntas, que impedimos que eles virem pó, que não permitimos que desapareçam enquanto escoam as areias do tempo. É preciso tentar ver a imagem dos que viveram num tempo sem fotos nem filmes, enquanto ouvimos as histórias sobre eles; histórias de gladiadores, escravos, piratas, soldados e heróis. Tudo isso que nos encanta hoje ao vermos esses mesmos personagens transformados pela magia da fantasia na tela do cinema.
No século XIX, Thomas Bulfinch escreveu O Livro da Mitologia, que em seu prefácio dizia: “Se considerarmos que os únicos ramos úteis do conhecimento são aqueles que concorrem para o aumento de nosso patrimônio material ou nosso status social, então a Mitologia não pode ser apresentada nessa categoria”. Ou seja, o conhecimento da mitologia não é prático, não é útil num sentido econômico, ninguém pode se tornar mais rico com esse conhecimento e ouso estender isso ao conhecimento da história. Se vocês conhecerem alguém que ficou rico pesquisando ou ensinando História, por favor, me apresentem, que eu quero aprender como se faz. Mas Bulfinch prossegue: “Sem o conhecimento da Mitologia, boa parte de nossa elegante literatura não pode ser compreendida e apreciada”. Estendo isso aos filmes. Temos hoje filmes sobre a Guerra de Troia e o herói Aquiles, filmes sobre Hércules, o poderoso filho de Zeus, nas mais variadas versões. E temos ainda filmes adolescentes sobre meninos e meninas semideuses nos dias atuais, como Percy Jackson e o ladrão de raios. Ou ainda a Mulher-Maravilha, a amazona, uma mulher guerreira, nascida sob a influência da mitologia grega e transformada em super-heroína. Os quadrinhos, e agora o cinema com os filmes baseados nas histórias em quadrinhos, estão cheios de super-heróis saídos diretamente da mitologia, como o poderoso Thor, da Marvel. Essas narrativas fantásticas nos inspiram e dão, muitas vezes, significado às nossas vidas.

Referências:
BEDRAN, Bia. A arte de cantar e contar histórias: narrativas orais e processos criativos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.
BULFINCH, Thomas. O Livro da Mitologia: A Idade da Fábula. Tradução: Luciano Alves Meira. 1.ed. São Paulo: Martin Claret, 2013.
FUNARI, Pedro Paulo; NOELLI, Francisco Silva. Pré-história do Brasil. 4.ed. São Paulo: Contexto, 2015. – (Repensando a História).



POR QUE APRENDER HISTÓRIA?



Dizia o historiador Marc Bloch: “O passado é, por definição, um dado que coisa alguma pode modificar. Mas o conhecimento do passado é coisa em progresso, que ininterruptamente se transforma e se aperfeiçoa”. Novos métodos de estudo, novas descobertas e novas interpretações estão sempre nos esclarecendo melhor sobre o passado e até reescrevendo o passado até então conhecido. Não podemos projetar no passado aquilo que nele não existiu, mas podemos sempre rever a forma como o nosso passado, a nossa memória e a nossa identidade enquanto povo, sociedade ou classe social são pensados.
Marc Bloch dizia ainda que “os exploradores do passado não são homens absolutamente livres. É seu tirano o passado, que só lhes consente saberem de si o que ele próprio, propositalmente ou não, lhes confiou”. O passado das várias civilizações que existiram na história da humanidade é cheio de lacunas. A História é como um quebra-cabeças com peças faltando. Por isso que apesar de ser uma ciência e que qualquer afirmação sobre a história dos homens deva ser fruto de investigação, comparação, pesquisa, reflexão, é impossível negar que uma boa dose de imaginação é necessária para penetrar no conhecimento do passado para compreender o nosso presente, que é o resultado desse passado. Temos que pensar o que pode ter acontecido, comparar com processos semelhantes que sejam melhor conhecidos e pensar as possibilidades de futuro que existiram no passado.
Diz um provérbio árabe: “Os homens parecem-se mais com o seu tempo que com os seus pais”. A cada geração, a forma de ver o mundo e de agir sobre ele se modificam e a visão que se tem do passado, as questões que chamam mais a nossa atenção e os julgamentos que fazemos a respeito das escolhas e das ações dos homens e mulheres que viveram antes de nós também. E essa também é uma razão para que o conhecimento histórico esteja sempre mudando. Compartilhamos com outras pessoas que nasceram e cresceram na mesma época que nós experiências, somos parte de uma experiência coletiva que marca o caráter da nossa geração. O nosso gosto musical, o que gostamos de fazer nas nossas horas de lazer e até os nossos projetos de vida dependem do contexto social e histórico em que vivemos e isso influencia também a forma como vemos o passado e o que esperamos do futuro.
Mas somos parte de uma jornada humana que começou muito antes de nós. Não brotamos como que por mágica da terra com o sentido de unicamente comprar o que é produzido e oferecido para nós nas propagandas que vemos na televisão, nos vários anúncios na internet e nos outdoors. Somos filhos, netos, bisnetos, somos parte de uma tradição familiar, política, religiosa. Os que vieram antes de nós foram parte de igrejas, partidos políticos, escolas de samba, sindicatos, associações de moradores ou de qualquer outra instituição, comunidade ou grupo social. E nós somos parte de seu legado. Nós herdamos o que os seres humanos do passado sonharam, criaram, construíram ou destruíram. Nós somos parte de uma história que nos atravessa, que começa antes do nosso nascimento e se estende até depois de nossa morte. Conhecer o presente e o passado das sociedades humanas e da nossa sociedade em especial é também um exercício de autoconhecimento.
Por tudo isso aprender História é fundamental. A História é uma ciência humana que nos faz enxergar as diferenças e o que há em comum entre os homens ao longo da nossa marcha sobre a Terra.

Referência:
BLOCH, Marc. Introdução à História. 2ª edição. Tradução: Maria Manuel Miguel e Rui Grácio. Lisboa: Publicações Europa-América, 1974.