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sábado, 19 de dezembro de 2015

LEMBRANÇAS DA MORTE - CONTO DE TERROR

LEMBRANÇAS DA MORTE

Lembranças da Morte

            A morte é esquecimento. A passagem do ser para o não ser. O fim da existência. O fim da consciência. Depois da morte, tudo que resta é o nada. Viramos uma vaga lembrança nas mentes daqueles que nos conheceram, na memória coletiva e nas linhas, para uns mais breves, para outros mais longas, da História. Eu não me esqueci disso no dia da minha morte.
            Sabe, sempre achei enterros deprimentes, mas até que o meu foi bonito. Assistir ao seu próprio sepultamento é uma experiência única. Vocês deveriam experimentar isso um dia. Para mim, uma vez já basta. Imaginem só se fosse verdadeira essa história de reencarnações: viver, sofrer, morrer e assistir a própria morte várias vezes. Isso sim é deprimente!
            Ainda posso sentir a estranha sensação dos vermes devorando minha carne. Não há nada de romântico na decomposição de um corpo, apesar de ser belo todo espetáculo da natureza. Este mundo não é feito de mistérios. Na verdade, tudo é bem simples. Pode causar algum desespero a não existência de uma alma imortal, mas há beleza também na visão realista e naturalista do mundo. Uma forma de ver o mundo que nos conecta com todos os outros seres viventes. A nossa conexão com tudo aquilo que existe no universo é a nossa porção de matéria e de energia e que é compartilhada por estrelas, astros, rochas e seres vivos. Somos feitos da mesma matéria que é feito o Sol. Somos feitos do mesmo material que compõe as estrelas. A mesma energia que aquece o universo, aquece os corações humanos. E o único limite da nossa divindade é o medo. Somos deuses que choram e que sangram. Somos deuses porque Deus é aquele que cria. E só quem cria nesse mundo é o homem. Criamos uma natureza humana, uma natureza humanizada, uma sociedade humana. Criamos coisas. Criamos até mesmo Deus. E, ainda assim, somos animais. As nossas necessidades vitais, os nossos instintos, as nossas necessidades fisiológicas e a nossa mortalidade aproximam-nos dos outros animais. Os animais temem as forças mais poderosas da natureza. O homem se fez homem controlando as forças da natureza, transformando a natureza, dominando-a. Somos deuses-bestas. Os animais têm medo do fogo. A primeira grande conquista da humanidade foi o controle do fogo. O medo é o maior limite do homem. O medo é o principal mecanismo de controle social. O medo é o principal instrumento de dominação. O medo é o maior limitador das nossas potencialidades. E o medo da morte é o limite absoluto. É o medo absoluto e universal. Ele é capaz de distorcer o nosso caráter, a nossa personalidade, os nossos valores éticos, os nossos sonhos e tudo mais que há. E eu fui, em vida, mais uma vítima do medo, covarde pela própria natureza.
            A minha excessiva cautela começou ainda na infância. Sempre tive medo de arriscar. E assim, segui pela adolescência, pela juventude e ainda mais quando entrei na vida adulta. Isso tornou minha vida tediosa e banal. Mas, um dia, um dilema ético mudou minha vida: num beco escuro, uma moça que eu nunca soube o nome estava sendo assaltada; ela gritava por socorro; o homem estava armado; e eu não fiz nada. A morte daquela garota ficou gravada na minha memória, assim como a lembrança da minha covardia. Ela foi roubada e assassinada e sabe-se lá o que mais o bandido fez com ela. Eu ouvi os comentários dos vizinhos sobre o assalto seguido de morte no dia seguinte e soube que tinha sido ela: a moça que eu, por covardia, não ajudei. Aquilo matou algo dentro de mim e, desde então, minha alma começou a enferrujar com o choro da morta e fui sendo corroído por essa lembrança. Então, eu comecei a beber. A bebida trazia-me conforto. É o esquecimento ainda em vida.
            Com o passar dos anos, o meu medo só aumentava. Desenvolvi diversas fobias. E foi aí, então, que eu conheci o pavor. E esse sentimento logo se transformou em desespero. Passei a me isolar em casa. Um misto de medo e vergonha erguia paredes ao meu redor e me impedia de encarar o mundo de frente. Cada notícia que eu via na televisão sobre guerra, terrorismo, criminalidade só me fazia querer ficar mais tempo em casa. Depois de alguns anos, decidi nunca mais sair. Não conseguia mais, de qualquer forma. A partir daí, desenvolvi síndrome do pânico e passei a ter pesadelos todas as noites. Dias e noites de terror tornaram-se rotina.
            A luta que eu travava comigo mesmo assumiu um caráter dramático. Estava desesperado. Certo dia, tentei sair de casa e fiquei paralisado na porta; comecei a ficar sem ar, sentindo-me sufocado e aterrorizado; então, eu caí no chão desmaiado. Depois de dois dias desacordado, despertei e estava decidido a nunca mais sair da segurança do meu lar. Uma prisão que retirava de mim  a minha liberdade, mas que me mantinha longe dos perigos.
            Três anos se passaram. Eu, finalmente, estava mudado. Olhando pela janela da minha casa numa manhã cinzenta de julho, vi um mendigo rasgando os sacos de lixo e comendo os restos de comida dos outros. Há alguns anos atrás eu teria me sensibilizado, sentido pena daquele pobre homem, que sobrevivia da maneira mais humilhante, vivendo pior do que um animal; mas, naquele dia, o único sentimento que eu tive diante daquela cena foi nojo, repulsa àquele homem e à forma como sobrevivia; distancie-me totalmente de tudo que era humano. A vida é frágil e ao acaso e a vida humana é repleta de sofrimentos. A felicidade é uma quimera. Viver é sofrer. A dor e a morte são as nossas companheiras de viagem. Companheiras em nossa jornada rumo ao nada. No final da tarde, começou a chover; era uma chuva fina e fria; o cheiro de chuva, o cheiro de terra molhada entrava pela janela; o barulho da chuva lembrava a glória da vida, a batalha contra a morte, a luta pela existência, as lágrimas que afogam toda a dor; isso tudo e eu não conseguia sentir nada. Eu estava vazio.
            Eu não cozinhava mais e também não saía para comer; então, eu comia apenas congelados, mais rápidos e práticos. Todos os dias eu usava o micro-ondas. Na segurança do meu lar, longe de todos os perigos, eu vivia na solidão, trabalhando em casa e comendo enlatados e congelados. Foi, então, que eu adoeci. Sentia dores e náuseas. Os sintomas foram piorando e tive de sair de casa para ir ao médico. Fui a vários médicos e fiz vários exames. Não tinha nada. Parecia ser algo psicossomático. Enxergando na depressão a causa de todo o mal-estar e dor, fui fazer terapia. Nenhum resultado foi obtido com a psicoterapia e terapias alternativas. Tampouco com os antibióticos que antes tomara. Já estava quase me acomodando àquela situação, quando ao defecar, tive um sangramento; poucas horas depois, estava vomitando sangue; ao ser internado na emergência do hospital mais próximo, acabei descobrindo que estava com câncer. Foram anos de exposição constante à radiação do micro-ondas e aos conservantes e outras substâncias químicas dos congelados e dos enlatados. De nada adiantou proteger-me do mundo lá fora. A morte, que já estava no meu encalço, alcançou-me finalmente. O meu medo não foi capaz de me proteger. Os meus cuidados excessivos não me afastaram do perigo. Eu estava morto. O medo me privou de uma vida plena. Uma vida sem sentido, sem grandes lembranças, sem momentos marcantes, só a tediosa repetição dos dias e das horas. A rotina já é uma morte em vida. Por viver com medo, tive uma vida monótona e sem significado. Agora era tarde. Tentar aproveitar a vida depois do diagnóstico da doença seria como tentar viver tudo que não se viveu no seu último dia na Terra antes do fim do mundo. É simplesmente uma coisa tola e inútil. Além do mais, seria uma mentira. Pelo menos, morreria coerente. Morreria o covarde e preguiçoso que sempre fui.
            Meses e meses eu fiquei internado num quarto de hospital. Nem as cirurgias, nem a quimioterapia, nem a radioterapia puderam me curar. No tempo em que estive no hospital, aproveitei para refletir sobre a minha vida. Queria que os meus pecados não tivessem sido tão grandes. Busquei em jornais antigos e na internet, notícias sobre a morte da garota que eu não socorri. Para o meu desespero, descobri que ela havia sido estuprada também. A minha alma morreu antes do meu corpo. A minha alma agonizante, havia falecido junto com o conhecimento do mal que a minha covardia e a minha indiferença foram capazes de causar. Então, resolvi encerrar o jogo. O pôr-do-sol na praia nunca foi tão lindo. Infelizmente, os médicos não poderiam me liberar do hospital naquelas condições. O sol dourado no céu, passando para um tom alaranjado e depois avermelhado. Nuvens cor-de-rosa lá no alto e um céu vermelho logo acima da linha do horizonte. Um cenário maravilhoso. Doses cada vez maiores de morfina, afastavam a dor e me aproximavam daquele céu, tornando a morte mais agradável, conforme a minha vida se esvaía. A doença devorava o meu corpo e quanto mais o câncer avançava, mais eu recuperava a minha alma humana. Pouco tempo depois eu estava olhando  para o meu corpo inerte, estendido sobre a cama do hospital. E isso é tudo. Viver e morrer por nada. Quando fecharam o meu caixão e jogaram a primeira pá de terra sobre ele, tudo que pude sentir foi um imenso alívio. Saio de cena para nunca mais voltar. É o fim do último ato. As cortinas se fecham e eu cumprimento agora a plateia. Tenham  todos uma boa vida, enquanto eu me junto às sombras que caminham e que habitam o Mundo dos Mortos. Serei apenas uma vaga lembrança. A vida, esta vida, será apenas uma vaga lembrança pra mim.

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