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segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

O PAPEL DA INDÚSTRIA CULTURAL NA ALIENAÇÃO DO TEMPO LIVRE - monografia da Pós em Filosofia


Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro


O PAPEL DA INDÚSTRIA CULTURAL NA ALIENAÇÃO DO TEMPO LIVRE: O ATROFIAMENTO DA FANTASIA E A MERCANTILIZAÇÃO DO ÓCIO




Rafael Alves Rossi


Monografia apresentada à Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro (FSB/RJ) para a obtenção do Certificado de Especialização em Filosofia Moderna e Contemporânea do Programa de Pós-graduação Lato Sensu.
Orientador: Prof. Doutor Vinicius de Carvalho Monteiro


Rio de Janeiro
2014














ROSSI, Rafael Alves. O PAPEL DA INDÚSTRIA CULTURAL NA ALIENAÇÃO DO TEMPO LIVRE: O atrofiamento da fantasia e a mercantilização do ócio. Rio de Janeiro: FSB/RJ, 2014.
Monografia do Curso de Especialização em Filosofia Moderna e Contemporânea, apresentada à Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro, no Programa de Pós-Graduação Lato Sensu.
Orientador: Prof. Dr. Vinicius de Carvalho Monteiro
Palavras-chave: Indústria Cultural, Alienação, Atrofiamento da Fantasia, Tempo Livre.




 
 













À Pâmela, minha esposa, que sempre me apoiou e que sempre me deu forças para a execução dos meus projetos intelectuais, incentivando e me emprestando seus ouvidos e sua crítica construtiva.
E dedico esse trabalho também ao meu grande mestre, Ciro Flamarion Cardoso, que me ensinou como professor e orientador na graduação e no mestrado, nas minhas primeiras experiências acadêmicas, a unir a originalidade de pensamento com a erudição na elaboração de uma pesquisa, de um trabalho acadêmico, que deve ser ao mesmo tempo fundamentado e crítico. 


Agradecimentos

Ao meu orientador, o Prof. Dr. Vinicius de Carvalho Monteiro, que sempre esteve à disposição para me orientar na elaboração desta monografia, apontando os erros, dando sugestões, estabelecendo um diálogo permanente, objetivo e ao mesmo tempo abrangente, sobre as questões teóricas e políticas que atravessam o tema escolhido. A orientação atenta e criteriosa contribuiu enormemente para que o trabalho fosse elaborado de maneira coerente. A criatividade na elaboração do trabalho foi sempre incentivada, bem como a confecção dele baseada na crítica, sempre fundamentada.
À Profa. Dra. Márcia do Amaral, que me incentivou e que me estimulou desde o início do curso tanto nas aulas quanto em conversas, tendo sido a primeira pessoa com quem conversei sobre o tema deste trabalho, e que aceitou, gentilmente, ser a leitora crítica desta monografia.
À Profa. Dra. Lucia Cavalcante Reis Arruda, que desde o início deste projeto, orientou-me e fez importantes sugestões ainda na elaboração do anteprojeto. A sua orientação, como professora de Metodologia da pesquisa, foi essencial para que eu tivesse objetividade e delimitasse adequadamente o tema que pretendia pesquisar.









A vida até parece uma festa.
Em certas horas isso é o que nos resta.
Não se esquece o preço que ela cobra.
Em certas horas isso é o que nos sobra.  
Ficar frágil feito uma criança.
Só por medo ou insegurança.
Ficar bem ou mal acompanhado.
Não importa se der tudo errado.
Às vezes qualquer um faz qualquer coisa
Por sexo, drogas e diversão.
Tudo isso às vezes só aumenta
A angústia e a insatisfação.
Às vezes qualquer um enche a cabeça de álcool
Atrás de distração.
Nada disso às vezes diminui
A dor e a solidão.
                                                  Titãs


RESUMO

Este trabalho se trata de uma investigação acerca da alienação do tempo livre do homem contemporâneo por meio da indústria cultural, que elabora e oferece aos indivíduos massificados e sem imaginação serviços e produtos para o seu divertimento e distração. Esse processo torna-se possível com o atrofiamento da fantasia nos indivíduos, que passam a necessitar daquilo que a indústria do entretenimento tem a oferecer para preencher seu tempo, para preencher sua vida vazia. O tédio é o sintoma mais visível do atrofiamento da fantasia. O tema é analisado com o auxílio dos conceitos e teses de Adorno, autor escolhido para ser estudado nesta pesquisa, partindo-se do comentário de suas principais elaborações sobre a indústria cultural, fornecendo assim os elementos para uma crítica do capitalismo tardio e da sociedade unidimensional e dos seus mecanismos de sujeição do homem à ordem social vigente. O trabalho estabelece um diálogo entre o marxismo clássico e a Escola de Frankfurt e desenvolve o processo de evolução da alienação humana, abordando os conceitos de alienação do trabalho, fetichismo da mercadoria e reificação, originários do marxismo, e ligando esses conceitos à análise adorniana e às teses fundamentais da teoria crítica, que foi influenciada não só pelo marxismo, mas também pelo freudismo, este último orientando também essa pesquisa e ajudando a explicar o regime de “servidão voluntária”. A arte deformada da indústria cultural é colocada diante da arte autêntica e a utopia colocada diante da racionalidade técnica e é nessa dialética que reside o cerne deste trabalho.

Palavras-chave: Indústria Cultural. Alienação. Atrofiamento da Fantasia. Tempo Livre. Mercantilização do Ócio. Racionalidade Tecnológica. Arte. Tédio. Diversão. Utopia.



ABSTRACT

This work is an investigation into the sale of spare time of modern man through cultural industry, which prepares and delivers to individuals and unimaginative commoditized services and products for your amusement and distraction. This process is made possible with the atrophy of imagination in individuals who are in need of what the entertainment industry has to offer to fill your time, to fill his empty life. Boredom is the most visible symptom of atrophy fantasy. The topic is analyzed with the aid of the concepts and theories of Adorno, chosen to be studied in this research, starting with the review of its main elaborations on the culture industry, thus providing the elements for a critique of late capitalism and the one-dimensional society author and their mechanisms of subjection of man to the prevailing social order. The work establishes a dialogue between classical Marxism and the Frankfurt School and develops the process of evolution of human alienation, addressing the concepts of alienation of labor, commodity fetishism and reification, originating from Marxism, and linking these concepts to Adorno and analysis the fundamental tenets of critical theory, which was not only influenced by Marxism, but also by Freudianism, the latter also directing this research and helping to explain the system of "voluntary servitude". The deformed art culture industry is placed before the authentic art and utopia put forth the technical rationality is this dialectic which lies at the heart of this work.

Keywords: Cultural Industry. Alienation. Atrophy of Fantasy. Free time. Commodification of Leisure. Technological rationality. Art. Boredom. Fun. Utopia.





SUMÁRIO

Introdução…………………………………………………………………..9
Capítulo 1: A alienação e o fetichismo da mercadoria em Marx e na Escola de Frankfurt........................................................................................................13
Capítulo 2: A indústria cultural e a alienação do tempo livre em Adorno: a mercantilização do ócio.................................................................................25
Capítulo 3: A racionalidade tecnológica e o atrofiamento da fantasia.........37
Conclusão.....................................................................................................50
Referências...................................................................................................54





Introdução

            A presente pesquisa visa explorar o tema da indústria cultural e sua relação com a alienação do tempo livre. Nesse sentido, é importante interrogar acerca do processo histórico que fez com que a alienação do trabalho se estendesse ao tempo do ócio que o trabalhador tinha para si fora da produção e o papel da indústria cultural na consolidação da desumanização do homem, transformado em trabalhador-consumidor e não mais um indivíduo com necessidades e vontade próprias. Esse é o ponto de partida desta monografia. O desenvolvimento histórico apresentado aqui será, primeiramente, o desenvolvimento teórico sobre o tema da alienação, situando evidentemente as interpretações filosóficas no seu contexto social e histórico específico e analisando o tema nas perspectivas da teoria crítica e do marxismo. O autor que fundamenta o eixo central desta crítica filosófica é Adorno. O seu conceito de indústria cultural e sua análise acerca do atrofiamento da fantasia na sociedade contemporânea possibilitarão a compreensão profunda de como se dá esse processo de alienação do tempo livre e por qual motivo.
            Sendo assim, o objetivo geral deste trabalho é analisar a evolução histórica da alienação humana, partindo do conceito de alienação do trabalho de Marx e das particularidades desse processo no sistema capitalista de produção, abordando o tema da indústria cultural e como ela atua no sentido de capturar o tempo livre do homem e trazê-lo para a rede do mercado, provocando a completa a alienação da vida.
            Essa pesquisa tem como objetivo específico verificar a dialética entre a conquista de mais tempo livre por parte dos trabalhadores e dos jovens no capitalismo tardio e a construção de um aparato técnico, econômico e ideológico para a conversão completa do homem em trabalhador e consumidor, ou seja, em sua perda total de autonomia para manter a geração do lucro do capitalista, com a ampliação do fetichismo da mercadoria a partir da mercantilização das atividades lúdicas e do prazer com a criação de inúmeras distrações e serviços da indústria de negócios do tempo livre, processo que se consolida com o atrofiamento da fantasia no homem contemporâneo.
            O tema do trabalho e a abordagem sugerida apontam para a ampliação do conhecimento acerca de uma questão de especial relevância nos dias de hoje, na medida em que nunca o tempo livre foi tão mercantilizado. Se no século XIX um operário podia trabalhar por volta de 14 horas por dia, com a redução da jornada de trabalho ao longo do século XX, o tempo livre disponível permitiu e tornou necessária a conversão do ócio em objeto do mercado. Deixar que as pessoas tivessem o seu tempo de vida para si significaria mais tempo para a reflexão e a ação na vida política, social e cultural, o que iria contra o sistema de dominação vigente. O homem alienado é reduzido a instrumento de trabalho. Na atualidade, o ser humano também é tanto mais valioso quanto mais consumista for. Desde cedo as crianças são estimuladas ao consumismo e a mesma dinâmica persiste na adolescência e na juventude. A oferta de variados tipos de diversão e de distração retira do homem o tempo do ócio que poderia ser destinado à reflexão. O tempo livre capturado pelo capital e transformado em mercadoria contribui para que os homens sejam completamente alienados de suas vidas. Pensar a esse respeito é necessário para uma compreensão mais profunda da superficialidade na “sociedade da informação” e do ritmo acelerado que impede as pessoas de serem mais que meros produtores e consumidores. A justificativa dessa pesquisa é teórica, mas inevitavelmente política também, pois se relaciona diretamente com o modo de vida dos homens na fase atual do capitalismo e, portanto, coloca em questão esse próprio modo de vida.
            Para a elaboração deste trabalho, partiu-se da seguinte hipótese: o atrofiamento da fantasia, provocado pela racionalidade técnica da sociedade industrial avançada, em especial no capitalismo tardio, torna as distrações e divertimentos oferecidos pela indústria cultural uma necessidade objetiva para o homem contemporâneo, que permite que o capital capture o seu tempo livre por não saber o que fazer com o seu ócio, instalando-se o tédio fora do tempo de trabalho; o homem acaba encontrando nos hobbiesum relaxamento passivo, restaurador das energias, e atividades necessárias para “matar o tempo”. Nesse sentido, é importante ressaltar que assim como o sistema aliena o tempo de vida do homem com um aparato técnico, econômico e ideológico especialmente construído para isso, esse mesmo homem entrega voluntariamente o seu tempo de vida à indústria do ócio.
            O método utilizado no trabalho é o método dialético. Essa escolha se deve ao fato de que este é o método que melhor atende à resolução das questões levantadas na pesquisa. O desenvolvimento conceitual do tema da alienação e o desenvolvimento da alienação na própria realidade empírica só podem ser analisados por meio do confronto de teses de autores que se debruçaram seriamente sobre esse problema e na perspectiva da totalidade, buscando perceber o contexto global da perda de autonomia e da reificação do homem contemporâneo. Neste trabalho, mais do que abordar os conceitos e fatos de forma estanque, o objetivo é relacionar as diversas interpretações sobre o tema e os fatos e conceitos que ajudam a explicar de forma mais precisa aquele que é o objeto desta pesquisa. Sendo assim, apesar da necessidade de se fazer um recorte para proceder à análise de um objeto determinado e de se investigar o particular num contexto específico, a dialética permite unir o particular e o geral e situar a crítica de um objeto de estudo determinado numa perspectiva ampla, estabelecendo as relações necessárias para o entendimento do tema e para uma abordagem original, produzindo uma nova interpretação e a síntese de leituras próximas umas das outras do ponto de vista teórico, mas dispersas no tempo e no espaço, construindo uma ponte para o diálogo entre a crítica marxista e a crítica da Escola de Frankfurt.
      A monografia se divide em três capítulos. O capítulo 1 chama-se A alienação e o fetichismo da mercadoria em Marx e na Escola de Frankfurt e começa tratando da alienação do trabalho em Marx. A compreensão exata desse conceito e do seu uso no contexto da teoria marxista é de fundamental importância para a realização do presente trabalho. O debate sobre a reificação e sobre a especialização do trabalho é apresentado por meio das análises de Lukács, um autor marxista que também exerceu influência sobre os pensadores da Escola de Frankfurt. O conceito de fetichismo da mercadoria é apresentado na sua elaboração original em Marx e na sua apropriação por Adorno na análise de um caso particular da arte deformada da indústria cultural, naquilo que Adorno chamou de fetichismo na música. O capítulo 2 foi intitulado A indústria cultural e a alienação do tempo livre em Adorno: a mercantilização do ócio e trata mais especificamente da indústria cultural e da alienação do tempo livre, isto é, do tema principal desta pesquisa. Mas neste capítulo a pesquisa ainda se encontra num nível mais descritivo, na exposição dos conceitos fundamentais e do funcionamento dessa indústria do entretenimento. No capítulo 2, Adorno é colocado diante de outros autores da Escola de Frankfurt e de seus intérpretes, além de outros teóricos marxistas que investigaram temas culturais como Mariátegui. Os conceitos oriundos da psicanálise de Freud e que tanto influenciaram a teoria crítica também aparecem neste capítulo e são brevemente explicados. A análise do indivíduo massificado permite a compreensão mais profunda de como se dá a dominação ideológica nessa etapa do capitalismo e como atua a cultura de massa. Por fim, no capítulo 3, intitulado A racionalidade tecnológica e o atrofiamento da fantasia, o tema deste trabalho finalmente pode ser compreendido. Neste capítulo é discutido o processo de atrofiamento da fantasia que faz com que o homem contemporâneo necessite das distrações produzidas pela indústria cultural. É a partir do diálogo entre Adorno e Marcuse que o entendimento das razões que levam esse indivíduo massificado a se submeter à ordem por completo é possível. A arte deformada da indústria cultural é colocada diante da arte autêntica e a realidade tecnológica é colocada diante da utopia e aquilo que é passa a ser criticado a partir daquilo que é em potencial, daquilo que pode ser, ou poderia, se não fosse deformado pela racionalidade tecnológica que sustenta a sociedade unidimensional, um mundo dominado por uma tecnocracia e apresentado como única alternativa histórica racional possível. O conceito de fantasia é dissecado e, nesse processo de investigação, ao se dar relevo à sua função crítica, torna-se possível dimensionar a gravidade de seu atrofiamento na atualidade.



Capítulo 1:
A alienação e o fetichismo da mercadoria em Marx e na Escola de Frankfurt

Nosso dia vai chegar,
Teremos nossa vez
Não é pedir demais:
Quero justiça,
Quero trabalhar em paz.
Não é muito o que lhe peço _
Eu quero trabalho honesto
Em vez de escravidão.
                Legião Urbana


Desde o início do século XX e, principalmente, a partir do pós-Segunda Guerra que a alienação do trabalho e o controle sobre o homem enquanto trabalhador não é a principal questão, pelo menos não isoladamente. O próprio tempo livre se tornou fonte de lucro para os capitalistas e objeto de suas preocupações. Na medida em que os movimentos dos trabalhadores foram conquistando a redução da jornada de trabalho e melhores salários, somadas ao fortalecimento de sua organização política e sindical, a classe dominante passou a se ocupar em controlar também o ócio e não somente o trabalho. É muito importante para o status quo que as pessoas não façam em seu tempo livre coisas que as levem a uma efetiva libertação em relação às estruturas sociais, econômicas e de poder vigentes.
A teoria da alienação do trabalho de Marx influenciou fortemente a Escola de Fankfurt. Para Marx, a origem da alienação estava na divisão do trabalho e a propriedade privada seria o resultado do trabalho alienado. A alienação ocorre quando o meio de vida do trabalhador é de outro. Para Marx, o homem se transforma em máquina no trabalho alienado sob o capitalismo. A alienação do trabalho faz do corpo humano um mero instrumento de trabalho. As necessidades mais básicas do homem, e até as animais, são negadas. O homem que não tem o que comer, que vive nas favelas sem saneamento básico ou que vivia nos cortiços e nos casebres sem o mínimo de dignidade estaria, segundo Marx, numa situação pior do que o homem que vivia nas cavernas. O operário ou o trabalhador manual precarizado e pauperizado ainda tem que pagar para viver em condições sub-humanas.
O trabalho cria o homem e o homem se realiza em sua atividade produtiva e criadora. Mas a alienação do trabalho é a negação da humanidade do homem e de sua autorrealização: “E se a alienação do trabalho significa uma total desrealização e alheamento do ente humano, então precisa o próprio trabalho ser percebido enquanto a própria exteriorização e realização do ente humano.” (MARCUSE, 1968, p.115). O trabalho é o conceito fundamental para explicar o conceito marxista de homem e, consequentemente, a alienação humana; é a chave para a compreensão da teoria da alienação em Marx: “A atividade vital consciente distingue o homem da atividade dos animais: só por esta razão ele é um ente-espécie. Ou antes, é apenas um ser autoconsciente, isto é, sua vida é um objeto para ele, porque ele é um ente-espécie.” (MARX In: FROMM, 1979, p.96). O trabalho é atividade livre e consciente do homem. O trabalho alienado é a inversão dessa relação. Na alienação, o homem, que é um ser autoconsciente “faz de sua atividade vital, de seu ser, unicamente um meio para sua existência.” (MARX In: FROMM, 1979, p.96). A atividade livre, consciente, é própria da espécie humana. A alienação do trabalho transforma a atividade vital humana em simples meio de satisfação de suas necessidades imediatas e mais animais.
O trabalho alienado produz o objeto como um ser alienado, independente do produtor. O trabalho externo ao trabalhador, realizado em benefício de outrem, não é autorrealizador, sendo sacrifício e trabalho forçado. O trabalho alienado aliena a natureza do homem, o homem de si mesmo e o aliena da espécie. O trabalhador, produzindo objetos que são seres estranhos que o dominam, só se sente livre nas suas funções animais, como escreve Marx (In: FROMM, 1979, p.94) nos seus manuscritos: “Chegamos à conclusão de que o homem (o trabalhador) só se sente livremente ativo em suas funções animais – comer, beber e procriar, (...) -, enquanto em suas funções humanas se reduz a um animal.”
A respeito da relação entre o trabalho alienado e a divisão social do trabalho, que dá origem à alienação econômica, Karl Marx (1974, p.30) expõe que a divisão do trabalho é “a expressão econômica do caráter social do trabalho no interior da alienação. (...) a divisão do trabalho nada mais é do que o por alienado, alheado da atividade humana enquanto atividade genérica real ou como atividade do homem enquanto ser genérico.”
Se a divisão do trabalho gera a alienação do trabalho, a propriedade privada é resultado do trabalho alienado: “A propriedade privada é, portanto, o produto, o resultado necessário, do trabalho alienado, da relação externa do trabalhador com a natureza e consigo mesmo.” (MARX In: FROMM, 1979, p.99). Karl Marx resume o que é a alienação do trabalho logo no início do primeiro manuscrito:
O que constitui a alienação do trabalho? Primeiramente, ser o trabalho externo ao trabalhador, não fazer parte de sua natureza, e, por conseguinte, ele não se realizar em seu trabalho mas negar a si mesmo, ter um sentimento de sofrimento em vez de bem-estar, não desenvolver livremente suas energias mentais e físicas mas ficar fisicamente exausto e mentalmente deprimido. O trabalhador, portanto, só se sente à vontade em seu tempo de folga,, enquanto no trabalho se sente contrafeito. Seu trabalho não é voluntário, porém imposto, é trabalho forçado. Ele não é satisfação de uma necessidade, mas apenas um meio para satisfazer outras necessidades. Seu caráter alienado é claramente atestado pelo fato de, logo que não haja compulsão física ou outra qualquer, ser evitado como uma praga. O trabalho exteriorizado, trabalho em que o homem se aliena a si mesmo, é um trabalho de sacrifício próprio, de mortificação. Por fim, o caráter exteriorizado do trabalho para o trabalhador é demonstrado por não ser o trabalho dele mesmo mas trabalho para outrem, por no trabalho ele não se pertencer a si mesmo mas sim a outra pessoa. (MARX In: FROMM, 1979, p.93)
Nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, o jovem Marx relaciona a alienação aos sentidos humanos: “É somente graças à riqueza objetivamente desenvolvida da essência humana que a riqueza da sensibilidade humana subjetiva é em parte cultivada, e é em parte criada (...)”. É de fundamental importância destacar, visto que este é um ponto polêmico no interior do próprio marxismo que, nos primeiros escritos de Marx, existe uma essência humana. E ele prossegue: “(...) que o ouvido torna-se musical, que o olho percebe a beleza da forma, em resumo, que os sentidos tornam-se capazes de gozo humano, tornam-se sentidos que se confirmam como forças essenciais humanas.” (MARX, 1974, p.18). Os sentidos propriamente humanos são capazes e existem para a fruição da beleza, para a fruição estética, e não apenas para operações mecânicas e prisioneiras da necessidade: “O sentido que é prisioneiro da grosseira necessidade prática tem apenas um sentido limitado. Para o homem que morre de fome não existe a forma humana da comida (...)” (MARX, 1974, p.18). A alienação do trabalho animaliza o homem: “(...) seria impossível dizer então em que se distingue esta atividade para alimentar-se da atividade animal para alimentar-se.” (MARX, 1974, p.18). O homem necessitado não é livre.
A natureza humana, a essência humana, se revela na História e deve ser interpretada historicamente. Ela existe em cada homem como uma potencialidade e se modifica ao longo do processo histórico, ao mesmo tempo em que nele se revela e, assim como a alienação, a essência do homem se manifesta no processo da vida concreta e real do indivíduo. A questão fundamental é que a sociedade baseada na divisão social do trabalho, na propriedade privada e na exploração do homem pelo homem, segundo o marxismo, impede o livre desenvolvimento das potencialidades humanas e, portanto, o seu desenvolvimento pleno. No mundo alienado do capitalismo as necessidades são criadas, não são necessidades humanas, manifestações de poderes latentes do homem, mas formas de forçar o homem sempre a um novo sacrifício. O homem sujeito às necessidades alienadas é um homem-mercadoria, que só sabe ter e consumir. Erich Fromm ressalta a dimensão humanista do pensamento marxista e discute em profundidade as consequências da alienação para a vida humana em sua obra Conceito Marxista do Homem e destaca a questão da alienação do homem em relação àquilo que ele pode ser, em relação à sua essência: “O homem alienado não o está apenas dos outros homens; ele está alienado da essência da humanidade, de seu ‘ente-espécie’, tanto em seus atributos naturais como espirituais.” (FROMM, 1979, p.58). No trabalho não-alienado o homem se realizaria não só como indivíduo, mas também como um ente-espécie, desenvolvendo todas as potencialidades humanas, toda a universalidade do homem que existe nele.
É importante salientar que a alienação que Marx descreve no século XIX é, em muitos aspectos, distinta da que existe hoje. A situação de penúria, de miséria dos trabalhadores produzia um sentimento de profunda alienação em relação à sociedade estabelecida. No entanto, o capitalismo contemporâneo encontrou formas mais suaves de extrair as energias físicas e mentais da maioria dos homens na produção de objetos estranhos à sua vontade e aos seus desejos em troca de dinheiro, que é trocado por sua vez por mercadorias supérfluas e divertimentos imbecilizados. O que não quer dizer que a pobreza extrema deixou de existir nem as formas mais brutais de opressão, de repressão e de exploração, apenas que se tornou possível ampliar os benefícios do capitalismo para um número maior de pessoas, ao mesmo tempo em que se toma, em certos casos voluntariamente, o tempo das criaturas humanas, convertido, seja no trabalho, seja no tempo livre, em lucro para os capitalistas.
A alienação do trabalho não se dá por completo por meio de qualquer divisão do trabalho, como a divisão sexual do trabalho no interior das aldeias neolíticas em seus primórdios. Somente com a especialização do trabalho e com a divisão do trabalho manual do trabalho intelectual que se concretiza e se consolida o processo de alienação humana. Diz Marx: “A divisão do trabalho só se concretiza, deveras, quando aparece uma repartição do trabalho mental e material.” (MARX In: FROMM, 1979, pp. 176-177). Sobre a divisão do trabalho nas sociedades em que há uma cisão entre o interesse particular e o interesse comum, Marx escreve que “uma vez seja o trabalho distribuído, cada homem tem uma esfera particular, exclusiva, de atividade, a ele imposta e da qual não pode fugir.” (MARX In: FROMM, 1979, p.178). E continua exemplificando a questão da especialização do trabalho e como o ser humano fica reduzido a uma determinada tarefa, a uma determinada função social, profissional, a uma atividade específica, negando a totalidade do seu ser e todas as possibilidades e potencialidades existentes em si para assegurar o seu sustento e de sua família e, portanto, sua própria sobrevivência e de seus descendentes: “Ele é caçador, pescador, pastor ou crítico, e assim tem de permanecer se não quiser perder seus meios de subsistência (...)” (MARX In: FROMM, 1979, p.178).
Há também em Marx uma forma de alienação, além da alienação do trabalho, e talvez anterior a ela que é a alienação da consciência. A consciência é desde o começo um produto social e a linguagem é a consciência prática. Para Marx, tanto a consciência quanto a linguagem brotam da necessidade e do intercâmbio entre os homens. A consciência é a existência consciente e a existência dos homens é o seu processo vital concreto. A natureza aparece para a consciência dos primeiros homens como uma força estranha e onipotente. De acordo com Karl Marx, a consciência dos homens pré-históricos “é percepção da natureza, que aparece primeiro ao homem como uma força completamente estranha, onipotente e invulnerável, (...) e pela qual eles são excessivamente aterrorizados como se fossem feras (...)” (MARX In: FROMM, 1979, p.176). Ele chama de religião natural a essa consciência puramente animal da natureza. É possível supor que a alienação em relação à natureza seja anterior à própria divisão do trabalho e que justamente a necessidade de superar as dificuldades naturais, de sobreviver a ambientes hostis, aos desastres naturais, às intempéries tenha gerado uma organização social mais complexa e a divisão do trabalho para dominar as forças da natureza.
Para Marx, existe uma alienação da consciência, que é a alienação religiosa, e uma alienação econômica, que é a alienação do trabalho. Ele expõe da seguinte maneira em seus manuscritos: “A alienação religiosa como tal ocorre somente na esfera da consciência, na vida interior do homem, mas a alienação econômica é a da vida real (...)” (MARX In: FROMM, 1979, p.117). Compreendendo adequadamente os conceitos de alienação da consciência e de alienação do trabalho é possível avançar para a análise da alienação do tempo livre no capitalismo tardio. Mas antes é preciso voltar à questão da especialização do trabalho como elemento fundamental do processo de alienação humana: “A natureza da alienação subentende que cada esfera aplica uma norma diferente e contraditória (...) cada uma está concentrada em uma área específica da atividade alienada e, por sua vez, acha-se alienada da outra.”(MARX In: FROMM, 1979, p.131). Desse modo, cada área específica, da Ciência, da Filosofia, da Política, da Arte, da Religião, etc., é “uma alienação particular do Homem”. A especialização, que garante o aumento de produtividade e, portanto, a riqueza social, empobrece o homem, na medida em que limita suas possibilidades e restringe o livre desenvolvimento das suas potencialidades. Cada ser humano é um ser amputado.
Lukács trata do tema da especialização e da reificação que surge da relação mercantil. Para Lukács (1974, p.114), a especialização unilateral viola a essência humana do homem. A especialização das qualificações leva à perda do sentido da totalidade. As funções parciais artificialmente isoladas são executadas por especialistas adaptados física e psiquicamente a elas (LUKÁCS, 1974, p.118). A reificação atinge tanto o proletariado quanto a burguesia no sistema capitalista de produção. Tanto a burguesia quanto o proletariado evidenciam a mesma alienação de si do homem, mas a burguesia sente-se confirmada nesta alienação, que é o seu próprio poder, enquanto o proletariado sente-se aniquilado pela alienação. Sendo assim, embora o proletariado compartilhe com a burguesia a reificação de todas as manifestações de vida, a classe capitalista possui a aparência de uma existência humana na sociedade burguesa e os operários vivem a realidade de uma existência desumana (LUKÁCS, 1974, p.169). O trabalhador “vê-se forçado a deixar que o reduzam ao estado de mercadoria, a uma pura quantidade, como objeto do processo.” (LUKÁCS, 1974, p.186). Para o trabalhador, a duração do trabalho não é apenas a forma objetiva da mercadoria que ele vende, sua força de trabalho, mas a forma que determina a sua existência como sujeito, as categorias qualitativas de toda a sua existência física, mental e moral. Na duração do trabalho a reificação atinge o seu ponto culminante, pois o trabalhador aparece a si próprio como objeto e não como ator do processo social de trabalho (LUKÁCS, 1974, pp.186-187). Para Lukács (1974, p.108), assim como o capitalismo se expande economicamente, “no decurso da evolução do capitalismo, a estrutura da reificação penetra cada vez mais profundamente, fatalmente, constitutivamente, na consciência dos homens.”. A reificação penetra profundamente na alma daquele que vende o seu trabalho como mercadoria por detrás da fachada de um trabalho intelectual ou de uma responsabilidade, como nos casos do jornalista e do burocrata, respectivamente. O homem reificado na burocracia se reifica, se mecaniza, de modo que até a sua essência psíquica e humana se transforma em mercadoria, diferente do operário que é aniquilado pelo processo de reificação, que tem sua alma atrofiada, mas que conserva um espaço interior seu, livre da mercantilização, da coisificação (ou era assim na época em que Lukács escreveu História e Consciência de Classe, em contraste com o período do pós-Segunda Guerra até os dias de hoje, em que também o operariado passou por um processo de integração espiritual ao sistema capitalista). No caso do burocrata, até os seus sentimentos e os seus pensamentos se reificam (LUKÁCS, 1974, p.192). O “vendedor das suas faculdades espirituais objetivadas e coisificadas”, segundo Lukács (1974, pp.114-115), “adota uma atitude contemplativa em relação ao funcionamento das suas próprias faculdades objetivadas e coisificadas.”. Ele fornece o exemplo dos jornalistas, que prostituem as suas convicções pessoais e convertem a sua faculdade de expressão num mecanismo abstrato, independente de sua personalidade, sendo este fato compreensível apenas como o ponto culminante da reificação capitalista. Com o processo de reificação, a força de trabalho do trabalhador se transforma em valor de troca e se torna uma “coisa autônoma” em relação ao seu “proprietário”. O desenvolvimento progressivo da reificação capitalista faz com que ela penetre, cada vez mais fundo, na alma humana, trazendo até mesmo a vida interior, as faculdades espirituais e o tempo livre para o âmbito das relações coisificadas.
            O pensamento burguês está aprisionado nas categorias fetichistas. O fetichismo da mercadoria é uma questão específica do capitalismo moderno. No capitalismo, a forma mercantil é a forma universal que modela o conjunto da sociedade. A relação social entre os homens é tomada por uma relação entre coisas. Os valores-mercadorias não contêm os valores de uso das mercadorias, sendo apenas produto do trabalho, abstraindo as qualidades materiais concretas de cada coisa e as diferentes formas de trabalho concreto que produzem objetos úteis e particulares, reduzidos a uma propriedade comum, o trabalho humano abstrato, o trabalho humano em geral, representando o dispêndio de força de trabalho humano para a produção; assim, na relação de troca das mercadorias, o valor de troca é independente do seu valor de uso. O fetichismo da mercadoria é próprio do modo de produção baseado na produção de mercadorias, em que os trabalhos particulares são reduzidos ao seu caráter comum de dispêndio de força humana de trabalho e os trabalhos diferentes são igualados pela qualidade comum de trabalho humano abstrato e os diferentes produtos do trabalho são igualados como valores. Para Marx, como na religião, em que os produtos do cérebro, da imaginação humana parecem assumir vida própria e se relacionar com os homens e entre si, os produtos do trabalho, da mão humana, parecem se relacionar entre si, a relação social entre os homens aparece como relação entre as coisas. Diferente do feudalismo, por exemplo, em que as relações de dependência pessoal e a forma concreta do trabalho eram os fundamentos da sociedade, na sociedade mercantil desenvolvida, os trabalhos e os produtos assumem a forma fantasmagórica, sendo relações sociais entre pessoas na realização de seus trabalhos dissimuladas em relações entre coisas. Os homens igualam seus diferentes trabalhos no mercado, sem que o saibam, ao igualarem as diferentes mercadorias, os diferentes produtos do trabalho na sociedade produtora de mercadorias como valores. Para os participantes da troca, a própria atividade social possui a forma de uma atividade de coisas que os controlam. Na Idade Média, a “corveia, como o trabalho que produz mercadorias, mede-se pelo tempo, mas cada servo sabe que quantidade de sua força pessoal de trabalho despende no serviço do senhor.”(MARX, 2013, p.99). As relações sociais de trabalho aparecem diretamente como relações pessoais e a forma social do trabalho é a forma concreta do trabalho. A definição de fetichismo da mercadoria dada por Marx em O Capital é a seguinte:
 A mercadoria é misteriosa simplesmente por encobrir as características sociais do próprio trabalho dos homens, apresentando-as como características materiais e propriedades sociais inerentes aos produtos do trabalho; por ocultar, portanto, a relação social entre os trabalhos individuais dos produtores e o trabalho total, ao refleti-la como relação social existente, à margem deles, entre os produtos do seu próprio trabalho. Através dessa dissimulação, os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas sociais, com propriedades perceptíveis e imperceptíveis aos sentidos. (...) a forma mercadoria e a relação de valor entre os produtos do trabalho, a qual caracteriza essa forma, nada têm a ver com a natureza física desses produtos nem com as relações materiais dela decorrentes. Uma relação social definida, estabelecida entre os homens, assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Para encontrar um símile, temos de recorrer à região nebulosa da crença. Aí, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, figuras autônomas que mantêm relações entre si e com os seres humanos. É o que ocorre com os produtos da mão humana, no mundo das mercadorias. Chamo a isso de fetichismo, que está sempre grudado aos produtos do trabalho, quando são gerados como mercadorias. É inseparável da produção de mercadorias. (MARX, 2013, p.94)
            Os conceitos de fetichismo da mercadoria e de alienação do trabalho de Marx e de reificação de Lukács fundamentam a crítica social e cultural da Escola de Frankfurt. Desenvolvendo essas ideias, tanto Adorno quanto Marcuse tratam da questão da alienação do tempo livre no capitalismo tardio com o surgimento de uma indústria do divertimento. Hilton Japiassú e Danilo Marcondes definem fetichismo da mercadoria como “o engano (ilusão) que se apodera dos homens quando se deixam fascinar por uma mercadoria de forma fantástica, desvinculando-a do trabalho humano.” (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2006, p.106). O termo reificação na teoria marxista é definido como “o último estágio da alienação do trabalhador, no sentido de que sua força de trabalho se transforma em valor de troca, escapando a seu próprio controle e tornando-se uma ‘coisa autônoma’” (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2006, p.238). O conceito marxista de fetichismo da mercadoria é utilizado por Adorno para descrever um aspecto particular da cultura de massas, da arte deformada pela indústria cultural, que ele chamou de fetichismo na música. Para Adorno, o papel que a música de massas do capitalismo contemporâneo desempenha na psicologia dos ouvintes é regressivo e contribui para tornar impossível o abandono da situação infantil geral. Segundo Adorno: “A música de entretenimento preenche os vazios do silêncio que se instalam entre as pessoas deformadas pelo medo, pelo cansaço e pela docilidade de escravos sem exigências.”(ADORNO, 1996, p.67). Adorno faz referência à descrição de Marx do caráter fetichista da mercadoria como “a veneração do que é autofabricado, o qual, por sua vez, na qualidade de valor de troca se aliena tanto do produtor como do consumidor, ou seja, do ‘homem’.” (ADORNO, 1996, p.77). Ele afirma ainda que a música na atualidade é totalmente dominada pela característica de mercadoria. O sucesso de um livro, de um filme ou de uma música é determinado pelos editores, magnatas do cinema e senhores do rádio. Examinando a relação entre arte e sociedade no capitalismo na fase imperialista, na época contemporânea, Adorno revela como o valor de troca se mascara como objeto de prazer: “Quanto mais inexoravelmente o princípio do valor de troca subtrai aos homens os valores de uso, tanto mais impenetravelmente se mascara o próprio valor de troca como objeto de prazer.” (ADORNO, 1996, p.79). O processo de fetichização da arte e a coisificação de todas as relações sociais levam à mercantilização de todas as manifestações da vida e transformam até mesmo o tempo livre, a sublimação estética e o prazer em mercadorias e o valor intrínseco das coisas e a esfera de liberdade e de autonomia se perdem diante do controle totalitário da sociedade unidimensional (o conceito marcuseano de sociedade unidimensional designa o processo de liquidação da cultura bidimensional, eliminando a contradição, o antagonismo entre a cultura superior e a realidade social, tornando a cultura superior parte da cultura material e reduzindo progressivamente o reino sublimado; além disso, na sociedade industrial avançada, a ideologia está corporificada no próprio processo de produção e as ideias que transcendem o universo estabelecido são repelidas, porque o modo de vida oferecido pelo sistema de dominação é desejado pela maioria). Para Adorno, portanto, “todo prazer que se emancipa do valor de troca assume traços subversivos.” (ADORNO, 1996, p.79). Os traços fundamentais da sociedade capitalista desenvolvida na época contemporânea são “a engenharia social da alma”, “o obsoletismo planejado”, “a produção e consumo do supérfluo”, a produção de mais “meios de destruição” e “a administração científica das necessidades instintivas”, de acordo com Marcuse. E o mais importante para o debate em questão, na sociedade capitalista contemporânea, “a mercadoria que tem de ser comprada e usada traduz-se em objetos da libido (...)” (MARCUSE, 1999, p.14). Assim, a vida humana e todas as suas manifestações vitais, físicas e mentais, são marcadas pelo valor de troca e até o seu desejo e sua vontade são coisas ou podem ser projetados em coisas que são compradas e vendidas. Somente aquilo que existe fora do âmbito da reificação assume um caráter verdadeiramente humano e, portanto, livre e subversivo.
O mundo contemporâneo é o da escravidão consentida; e é tanto mais consentida quanto mais benefícios os felizes servos obtêm. A elevação do padrão de vida a níveis nunca antes experimentados tornou uma necessidade objetiva um elevado padrão de vida. Isso quer dizer que os homens se tornaram prisioneiros de sua situação social, escravos de suas coisas: “os bens e serviços que os indivíduos compram controlam suas necessidades e petrificam suas faculdades.” (MARCUSE, 1999, p.99). O resultado disso é que no capitalismo tardio não é só o trabalho que é alienado, mas o próprio ócio. O tempo livre, assim como o tempo de trabalho, é objeto do mercado, trocado por divertimentos quase sempre imbecilizantes. “Em troca dos artigos que enriquecem a vida deles, os indivíduos vendem não só seu trabalho, mas também seu tempo livre. A vida melhor é contrabalançada pelo controle total sobre a vida”(MARCUSE, 1999, p.99). Marcuse oferece, assim, uma análise sobre como são as pessoas e o que a classe dominante busca retirar da massa nos dias de hoje. Os desejos de dominadores e dominados se encontram e a alegria, uma alegria rebaixada, é sentida pelos que vendem o seu tempo livre em troca de diversão. Os donos do poder, por outro lado, se asseguram de que os explorados não usarão o seu tempo de vida em atividades não supervisionadas e devidamente orientadas. Produzem uma série de distrações para que as pessoas “matem o tempo”, abdicando de dispor livremente do seu tempo de vida, de forma autônoma:
As pessoas residem em concentrações habitacionais – e possuem automóveis particulares, com os quais já não podem escapar para um mundo diferente. Têm gigantescas geladeiras repletas de alimentos congelados. Têm dúzias de jornais e revistas que esposam os mesmos ideais. Dispõem de inúmeras opções e inúmeros inventos que são todos da mesma espécie, que as mantêm ocupadas e distraem sua atenção do verdadeiro problema – que é a consciência de que poderiam trabalhar menos e determinar suas próprias necessidades e satisfações. (MARCUSE, 1999, p.99)


Capítulo 2:
A indústria cultural e a alienação do tempo livre em Adorno: a mercantilização do ócio

A Televisão me deixou burro muito burro demais
Agora todas as coisas que eu penso me parecem iguais
                                                             Titãs


Adorno destaca a importância da indústria cultural na sociedade contemporânea. Os modernos trustes culturais possibilitam aos indivíduos, que consintam em pactuar, fazer fortuna (ADORNO, 2010, p.23). Os próprios artistas tornam-se produtos da indústria cultural e expressam a ideologia da classe dominante. Artistas, intelectuais e ativistas rebeldes são assimilados pela indústria do entretenimento e pelos grandes meios de comunicação e aqueles que não se integram são sufocados. A censura pode ser um instrumento, mas, na maioria das vezes, nem isso é preciso; basta a produção em série de uma variedade de coisas idênticas, totalmente ajustadas aos interesses dos donos do poder e aos gostos cultivados nos consumidores, para que aquele que resiste seja destruído, aniquilado. A única forma de sobreviver é se integrando a esse sistema.
Mariátegui foi um importante socialista latino-americano que, entre outras coisas, discutiu sobre a arte contemporânea e sua relação com a indústria da celebridade. Ele afirmava em seu texto O artista e a época: “O renome é fabricado com base na publicidade. (...) O artista deve sacrificar sua personalidade, seu temperamento, seu estilo, se não quiser, heroicamente, morrer de fome.” (MARIÁTEGUI, 2005, p.229). O artista contemporâneo deve ter empresários que administrem suas obras e sua atividade, que devem contar ainda com uma boa avaliação de peritos e críticos. A arte é um negócio e um artista só pode prosperar se aquilo que ele produz está de acordo com o gosto da burguesia. Ao artista independente é negada a possibilidade de realizar a sua personalidade. O pilar da fama de um artista hoje é a imprensa. Sobre isso Mariátegui (2005, p.231) afirmava: “A ditadura da imprensa pesa excessivamente sobre a sorte dos artistas contemporâneos. Os jornais podem elevar ao primeiro plano um artista medíocre e podem relegar ao último um artista superior.”. O artista é limitado em sua criação e o seu direito à glória é determinado pela grande mídia. Mas não só a imprensa como toda a indústria da celebridade atua nesse sentido: “Mas a imprensa é apenas um dos instrumentos da indústria da celebridade. A imprensa só é responsável por executar o que os grandes interesses dessa indústria decretam.” (MARIÁTEGUI, 2005, p.231). Os artistas são lançados no mercado pelos empresários da arte como qualquer outro produto e a arte é tratada como um negócio como todos os outros. A dependência dos artistas contemporâneos em relação aos managers da arte é funcional para o sistema e estabelece um acordo hipócrita entre uns e outros: “Os managers da arte e da literatura têm nas suas mãos todos os instrumentos da fama.”(MARIÁTEGUI, 2005, p.231). A celebridade é uma questão de publicidade e de propaganda na sociedade capitalista contemporânea e o maior ou menor talento dos artistas conta muito pouco, sendo escolhidos para fazer sucesso os artistas que simbolizarem o ideal do sistema e forem as melhores marcas: “Em geral, a publicidade, a propaganda são onipotentes no nosso tempo. A sorte de um artista, por conseguinte, muitas vezes só depende de um bom empresário.” (MARIÁTEGUI, 2005, p.232). E Mariátegui conclui: “Os comerciantes de livros, quadros e estátuas decidem o destino da maioria dos artistas.”(MARIÁTEGUI, 2005, p.232).
Segundo Walter Benjamin, a obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica, ao se emancipar da práxis ritual, funda-se na práxis política. Isso significa uma mudança profunda na função social da arte. A obra de arte reproduzida se torna uma obra de arte voltada para a reprodutibilidade (BENJAMIN, 2012, p.35). O cinema, por exemplo, renuncia ao valor de eternidade que os gregos buscavam na produção de suas obras de arte, pois as obras de arte gregas da Antiguidade não podiam ser reproduzidas tecnicamente. Benjamin percebia o cinema dialeticamente, contendo nele as mais belas promessas revolucionárias e os maiores perigos da reação fascista. O controle da massa sobre o cinema pode libertá-lo de sua exploração capitalista. No entanto, o capital cinematográfico transforma as chances revolucionárias desse controle da massa sobre o cinema em contrarrevolucionárias, por meio do culto do estrelato que conserva a magia da personalidade e seu caráter de mercadoria e por meio do culto do público (BENJAMIN, 2012, pp.76-77). Para Walter Benjamin, o homem contemporâneo possui o direito legítimo de ser reproduzido, esse é um direito das massas, direito esse que é limitado ou negado pela exploração capitalista do cinema: “Na Europa Ocidental, a exploração capitalista do cinema bloqueia a consideração do direito legítimo de ser reproduzido que o homem atual possui.” (BENJAMIN, 2012, p.81). O interesse originário das massas pelo cinema que era de autoconhecimento foi falsificado pelo poderoso aparelho publicitário mobilizado pela indústria cinematográfica, sendo, portanto, a desapropriação do capital cinematográfico uma necessidade: “A desapropriação do capital cinematográfico, assim, é uma exigência urgente do proletariado.” (BENJAMIN, 2012, p.83). É importante observar que Walter Benjamin coloca essa questão em termos marxistas, de classe, da luta de classes e da consciência de classe. Contra a estetização da vida política promovida pelo fascismo e a consumação da arte pela arte, que se encontra com o fascismo, Benjamin propõe a politização da arte, a resposta do comunismo à estetização da política do fascismo. Analisando ainda o cinema e a tecnização da vida, Walter Benjamin expõe que o cinema cria figuras do sonho coletivo e que a tecnização produziu nas grandes massas tensões que podem assumir um caráter psicótico, sendo que “essa mesma tecnização criou, contra tais psicoses das massas, a possibilidade de uma vacina psíquica por meio de certos filmes”. Esses filmes produziriam um tipo de catarse com “fantasias sádicas” e “delírios masoquistas”, impedindo “o amadurecimento natural e perigoso destes nas massas” (BENJAMIN, 2012, pp.101-103). As possibilidades que Benjamin enxergava no cinema, podemos supor que se apliquem à internet nos dias de hoje, e na evidente busca por se exibir, por existir, e de interagir e se expressar, ao mesmo tempo em que isso é direcionado, manipulado e vigiado de perto.
A Escola de Frankfurt deu valiosa contribuição acerca do tema da alienação e da indústria cultural e como a sociedade contemporânea tende ao fascismo, ao totalitarismo. Se a propaganda servia para orientar o comprador no mercado na sociedade competitiva, com o fim do livre mercado e o surgimento do capital monopolista a propaganda assume o caráter de reforço do vínculo que liga os consumidores às grandes firmas (ADORNO, 2010, p.66). Os nomes das principais marcas são repetidos constantemente nos grandes meios de comunicação e financiam, ao mesmo tempo, a indústria cultural, que tem uma função claramente ideológica e de primeira importância na contemporaneidade. A humanidade foi metamorfoseada em clientela pelos fornecedores (ADORNO, 2010, pp.86-87). O nível de produtividade atingido nas sociedades desenvolvidas permite que as massas participem de seus benefícios e isto se soma à administração científica das necessidades instintivas, tornando as mercadorias que tem que ser compradas em objetos da libido. Para Marcuse, o trabalho alienado é a negação do princípio de prazer. A sociedade capitalista contemporânea se organiza sob o domínio do princípio de desempenho, que torna o corpo e a mente instrumentos de trabalho alienado. A rotina fatigante e mecânica do trabalho alienado transforma o lazer num relaxamento passivo. O tempo de ócio serve para a recuperação de energias para o trabalho. No mundo atual, são as coisas que possuem os indivíduos e não os indivíduos que possuem as coisas.
teoria crítica (abordagem teórica dos pensadores da Escola de Frankfurt) mergulha no freudismo para construir a sua interpretação original da realidade. O conceito freudiano de princípio de prazer designa o programa do indivíduo e o princípio que rege o inconsciente. O desenvolvimento do indivíduo é dirigido pela satisfação da felicidade. No entanto, o princípio de prazer irrestrito, a luta pela obtenção de prazer e a rejeição de operações que possam originar sensações de desprazer, entra em conflito com o meio natural e humano. De acordo com a teoria freudiana e segundo a interpretação de Marcuse, o indivíduo compreende a impossibilidade da plena gratificação de suas necessidades e o princípio mental do prazer cede lugar ao princípio de realidade e o homem aprende a renunciar ao prazer momentâneo, à gratificação permanente de seus desejos e impulsos destrutivos, e o prazer passa a ser adiado em nome de ganhos mais duradouros. O princípio da realidade é o princípio que rege a civilização e é sobre o princípio da realidade que o ser humano desenvolve a função da razão, ficando, no entanto, a atividade mental da fantasia livre do domínio do princípio da realidade e vinculada ao princípio de prazer. O conceito de princípio de desempenho de Marcuse designa o princípio de realidade específico que governou o progresso da civilização, um princípio de realidade baseado na dominação e na alienação que governam uma sociedade fundada na exploração do homem pelo homem e que determinam as exigências impostas aos instintos por esse princípio de realidade específico. A subordinação se efetiva pela divisão social do trabalho sob o princípio de desempenho. Os conceitos psicanalíticos de id, ego superego, as principais camadas da estrutura mental, também são importantes para a compreensão dos fenômenos culturais na perspectiva da teoria crítica. O id é o domínio do inconsciente, dos instintos primários, a camada mental mais antiga. O id não é afetado pelo tempo nem pelos valores morais da sociedade e está ligado ao princípio de prazer. O id também é alimentado com o conteúdo socialmente indesejável recalcado pelo Ego em nome do princípio de realidade. O ego é o mediador entre o id e o mundo externo. O principal papel do ego é controlar os impulsos instintivos do id, reduzindo ao mínimo os conflitos com a realidade e reprimindo impulsos que sejam incompatíveis com a mesma. O ego está ligado ao princípio de realidade, que promete segurança, porque o ego é a instância da consciência e do recalque ao mesmo tempo, sendo, portanto, as atividades do ego em parte inconscientes, estando esse fato expresso nos mecanismos de defesa que são funções inconscientes do ego, dentre eles o recalque (motivado pelo medo ou pela culpa, que impede o impulso censurado de se tornar consciente pelo indivíduo, sendo produzido pelos imperativos do Superego e pelas identificações com a autoridade externa). O superego é uma instância intrapsíquica que representa a autoridade repressora externa; ele é a internalização do poder, o Pai internalizado; é a incorporação do sistema de valores encarnado pelo Pai, ou seja, a identificação com o pai; o superego extrojetado investe com os atributos da autoridade paterna internalizada a autoridade externa. Freud escreve que a agressividade é introjetada pelo indivíduo e assumida por uma parte do ego, como superego, contra o resto do ego do sujeito. O superego exige a renúncia instintiva, mas isso não basta, porque o desejo persiste e o indivíduo não pode escondê-lo de seu próprio superego, o que gera o sentimento de culpa; não se trata do medo de agressão de uma autoridade externa, mas do medo da consciência. O conceito de libido, outro conceito psicanalítico importante nesse estudo, designa as manifestações do poder de Eros, o instinto de vida. E, por fim, há ainda o conceito de projeção, o mecanismo de defesa pelo qual o indivíduo expulsa de si e localiza no exterior os desejos e as qualidades que não aceita em si mesmo, assumindo formas paranoicas e criando sistemas delirantes, localizando no outro os seus próprios impulsos condenados por seu superego e extrojetando as pulsões, os impulsos internos do id sob a forma de forças diabólicas, enxergando no outro aquilo que vê em si mesmo de demoníaco ou, pelo contrário, significa a atribuição a um outro de uma onipotência que deseja ter, mas que reconhece sua incapacidade, sua impotência real e tenta se realizar através do sucesso e do poder desse outro.
Ao contrário da arte degenerada da indústria cultural, a arte autêntica é uma reserva de anseios humanos por outra sociedade além da atual: a verdadeira arte traz uma promessa de felicidade, preserva a utopia; é expressão do interesse do homem por sua felicidade futura. A esfera estética é também política. A arte é uma força de protesto do humano contra as instituições dominadoras. Benjamin tinha esperança no potencial progressista da arte politizada: “Em um ensaio importante, ‘O autor como produtor’, escrito quando a influência de Brecht estava no auge, Benjamin sugeriu que era preciso acrescentar letra à música para lhe dar conteúdo político.” (JAY, 2008, p.263). Para Adorno, a função política da arte residia no fato dela antecipar a outra sociedade negada pela sociedade estabelecida, por ser a negação do existente.
Enquanto na grande arte a memória da injustiça sobrevive, a indústria cultural apaga os vestígios da injustiça. A indústria cultural promove e divulga repetidamente os produtos culturais cuja fórmula que seguem já obteve sucesso. A essência da audiência em massa é o reconhecimento do familiar. Na música de entretenimento, o ouvinte fica reduzido a uma passividade masoquista. O ouvinte contemporâneo regrediu a um estado infantil; ele é dócil, teme a novidade, só consegue ser receptivo ao que gostou antes, à repetição. O rádio estimula a padronização e isso tem relação com a ética de troca do capitalismo, mas também com a racionalidade técnica. A arte é fruto da divisão repressiva do trabalho físico e do trabalho intelectual e, portanto, alienação. Ou assim era até o advento da sociedade unidimensional. A cultura alienada continha um momento de verdade e a promessa de uma ordem não-alienada; essa cultura foi substituída na sociedade industrial desenvolvida: a sublimação estética deu lugar à dessublimação repressiva. A “consciência infeliz” da humanidade, que continha a memória da injustiça e representava na esfera da cultura a perspectiva de transcendência, foi substituída pela consciência feliz da sociedade unidimensional. A censura, nos dias de hoje, ocorre pela técnica da libertação aparente. A indústria cultural administra a libido, que deixou de ser uma força associal e é alimentada sob a forma de cultura de massas. O mundo atual é padronizado e administrado. O Id do indivíduo é liberado, mas as forças do Desejo desencadeadas são manipuladas e controladas. No tempo presente, as massas são privadas de uma personalidade. O indivíduo tem sua vida profissional determinada pelas empresas e pela administração pública e sua vida privada pela indústria cultural. No capitalismo liberal, a identificação levava à introjeção do Pai e criava a instância do Superego. As instâncias externas de dominação eram investidas da autoridade associada à imagem paterna. A autonomia relativa do indivíduo e a personalidade forte modelada à imagem do pai autoritário eram importantes para a ordem burguesa no período do capitalismo concorrencial. No mundo contemporâneo, o sujeito histórico que se mostrou capaz de oferecer às massas a possibilidade de satisfação do desejo de identificação com um modelo, diante do fim da mediação exercida pelo Superego e do papel da família como “agência psicológica da sociedade”, passando o aparelho psíquico a ser administrado pelo poder dominante sem intermediários, foi o líder fascista. Com a decadência da família patriarcal no capitalismo tardio, a identificação com a imagem paterna foi substituída pela idealização, sendo o líder fascista investido dos ideais de perfeição que o próprio indivíduo não é capaz de alcançar. O indivíduo massificado projeta sua imagem fictícia de força e reprime a realidade de sua fraqueza ao fazer do líder o seu ideal. O indivíduo massificado é narcisista: “A idealização é uma forma de narcisismo: o objeto idealizado é parte do próprio sujeito, e amá-lo significa amar-se a si mesmo. (...) O líder é a projeção narcisista dos atributos que o indivíduo massificado ambiciona ter (...)” (ROUANET, 2001, p.131). O desejo de poder dos indivíduos massificados é projetado no líder fascista e sua impotência real é anulada na figura do líder. No caso da cultura de massa, mesmo a figura do líder se torna desnecessária para garantir a adesão ao existente. Com o declínio da família patriarcal e no ambiente das democracias de massa (ou seja, em que a figura do líder carismático fascista não é o principal veículo de identificação com a ordem existente), a indústria cultural promove a identificação com a ordem a partir de líderes secundários e os valores da cultura de massa são personalizados em figuras célebres:
 Mas se no fascismo a adesão ao existente é mediatizada pela pessoa do líder, do Partido e de sua dramaturgia, essa mediação não é necessária no caso da cultura de massa. A liderança se dispersa, se despersonaliza, e se investe no que Freud chama de ‘líderes secundários’, que encarnam as ideias e valores abstratos, essencialmente irracionais, responsáveis pela coesão do grupo. A identificação ao sistema é assegurada através da identificação com esses líderes secundários. O que, por sua vez, só é possível através de uma espécie de repersonalização regressiva dessas forças sociais abstratas. Como é psicologicamente impossível que o indivíduo se identifique com poderes reificados, tais poderes são repersonalizados, o que possibilita a identificação. (...) O líder carismático é substituído por uma galeria de personagens célebres – artistas, cientistas, políticos – insistentemente expostos ao público, na imprensa, na televisão, no cinema, pela máquina gigantesca da indústria cultural. (...) Para a indústria cultural não há ideias, há indivíduos: a estrutura de poder tem ramificações tão complexas que se torna intransparente, e essa intransparência, ao mesmo tempo que a protege contra olhares indiscretos, impede uma verdadeira identificação com o status quo, e precisa ser transfigurada em algo translúcido – a vida amorosa de uma atriz, o genocídio individual de um tenente ou o drama de consciência de um candidato presidencial – com o qual a identificação seja possível. (ROUANET, 2001, pp.138-139)
Como se pode ver, as celebridades mobilizam os mesmos processos psicológicos que a liderança fascista, levando à identificação do indivíduo massificado com o status quo, e a se realizar na vida da atriz e do cantor famoso. Como seus fãs, os indivíduos massificados participam de seu sucesso. Aceitam se submeter como seus seguidores, pois é melhor seguir quem é rico e famoso do que ser um anônimo com uma vida vazia, ficando totalmente alheio ao que de melhor essa sociedade tem a oferecer. A indústria cultural apresenta um modelo a seguir e o segredo da felicidade é aceitar essa satisfação substitutiva, ao invés de levar uma vida de outsider. A personalização dos valores dominantes nos astros e estrelas da indústria cultural, que tem suas vidas expostas para que as pessoas comuns os acompanhem e possam nutrir o desejo, nelas incutido, de talvez um dia ocupar aquele lugar, tendo como única meta válida e racional na vida se realizar pessoalmente daquela maneira, é o modo como os indivíduos se identificam com a ordem social sob a democracia de massa. 
Em suma, no fascismo, a identificação com ideias só é possível através da pessoa do líder; a cultura de massas prescinde da mediação do líder, desde que as ideias se convertam, de alguma forma, em pessoas, e sempre que as relações sociais, forças incompreensíveis, se humanizem, permitindo que as tragédias coletivas sejam vividas como psicodramas. (ROUANET, 2001, p.139)
            Martin Jay, no livro A Imaginação Dialética, aponta uma das principais preocupações da Escola de Frankfurt, que era com o fato de que a indústria cultural escravizava os homens de maneira sutil:
Cada vez mais, o Institut passou a sentir que a indústria da cultura escravizava os homens de maneiras muito mais sutis e eficazes do que os métodos crus de dominação praticados em eras anteriores. Sob certos aspectos, a falsa harmonia do particular e do universal era mais sinistra do que o choque das contradições sociais, por induzir as vítimas a uma aceitação passiva.  (JAY, 2008, p.278)
            A cultura de massa não é verdadeiramente democrática; a indústria cultural oferece uma cultura falsa e reificada. A natureza reacionária da indústria cultural também é descrita por Sérgio Rouanet emTeoria Crítica e Psicanálise:
A indústria cultural é a caricatura monstruosa de um Belo que no entanto já contém, em sua essência, a justificação dessa caricatura. Mas enquanto na grande arte a memória da injustiça sobrevive, e como tal aponta para uma ordem que a anula, a indústria cultural apaga até os últimos vestígios da injustiça. A cultura, transfiguração estética da opressão econômica (Marx) e da dinâmica pulsional (Freud) é também, uma ‘promesse de bonheur’ – antecipação de um mundo não regido pelo valor de troca e pela repressão pulsional. Antecipação obliterada pela indústria cultural, que naturaliza tanto a contradição do real antagonístico como seu reflexo na estrutura psíquica.(ROUANET, 2001, p.118)
            Diferente de Benjamin, a indústria cultural não é vista como algo que pode ser explorado em suas contradições, a arte de massas não pode cumprir um papel progressivo nem o aparato técnico que ela envolve. O que foi sugerido acerca da internet, por exemplo, a partir do pensamento de Walter Benjamin não faz o menor sentido na perspectiva adorniana. Em sua época, Adorno chegou a analisar o que significava e o impacto que teria a televisão. Para ele: “A televisão tende a uma síntese do rádio e do cinema, retardada enquanto os interessados ainda não tenham negociado um acordo satisfatório (...)”(ADORNO, 2010, p.12). A partir dessa perspectiva, não faz o menor sentido pensar que as contradições de uma determinada indústria podem ser usadas de forma progressiva de maneira cada vez mais ampla. Muito pelo contrário. Apenas os problemas técnicos e as divergências de natureza comercial retardam a afirmação de determinado setor da indústria cultural como um sistema total de natureza absolutamente reacionária. Adorno previa ainda em relação à televisão que “possibilidades ilimitadas prometem intensificar a tal ponto o empobrecimento dos materiais estéticos que a identidade apenas ligeiramente mascarada de todos os produtos da indústria cultural poderá triunfar abertamente.” (ADORNO, 2010, p.12). Também sobre o cinema, Adorno e Benjamin discordavam enormemente. Para Adorno, o filme sonoro paralisava a capacidade criativa do homem:
Quanto mais densa e integral a duplicação dos objetos empíricos por parte de suas técnicas, tanto mais fácil fazer crer que o mundo de fora é o simples prolongamento daquele que se acaba de ver no cinema. Desde a brusca introdução da trilha sonora o processo de reprodução mecânica passou inteiramente ao serviço desse desígnio. A vida não deve mais, tendencialmente, poder se distinguir do filme sonoro. Superando de longe o teatro ilusionista, o filme não deixa à fantasia e ao pensamento dos espectadores qualquer dimensão na qual possam – sempre no âmbito da obra cinematográfica, mas desvinculados de seus dados puros – se mover e se ampliar por conta própria sem que percam o fio. Ao mesmo tempo, o filme exercita as próprias vítimas em identificá-lo com a realidade. A atrofia da imaginação e da espontaneidade do consumidor cultural de hoje não tem necessidade de ser explicada em termos psicológicos. Os próprios produtos, desde o mais típico, o filme sonoro, paralisam aquelas capacidades pela sua própria constituição objetiva. Eles são feitos de modo que a sua apreensão adequada exige, por um lado, rapidez de percepção, capacidade de observação e competência específica, e por outro é feita de modo a vetar, de fato, a atividade mental do espectador, se ele não quiser perder os fatos que rapidamente se desenrolam à sua frente. É uma tensão tão automática que não há sequer necessidade de ser atualizado a cada caso para que reprima a imaginação. (ADORNO, 2010, pp.15-16)
            Nesse fragmento, pode-se notar que Adorno era bastante pessimista em relação ao cinema, principalmente a partir das inovações técnicas que levaram ao cinema falado. O filme que passa na tela do cinema, cada vez mais, se tornava um prolongamento da realidade e (o mais importante) o mundo real aparecia para os indivíduos como a continuidade do mundo visto pelo cinema. O ritmo dos filmes também prende a atenção das pessoas de tal forma que se torna impossível utilizar e desenvolver a imaginação consumindo esse produto cultural. Cada filme é a reprodução do mesmo, reduzindo a capacidade intelectual do consumidor cultural e o seu horizonte. Os indivíduos são induzidos, pela própria constituição objetiva dos produtos da indústria cultural, a não pensarem com a própria cabeça. O prazer proporcionado pela indústria do entretenimento não exige nenhum esforço do espectador. Qualquer coisa verdadeiramente original é vetada, censurada pela indústria cultural, que só consente em apresentar como novo aquilo que é habitual, a repetição do mesmo com outra roupagem. Toda a ilusão de novidade é gerada pelo ritmo industrial da arte de massas, pelo movimento constante que impede a reflexão, e, assim, a imaginação também é atrofiada.
A mesmice também regula a relação com o passado. A novidade do estágio da cultura de massa em face do liberalismo tardio está na exclusão do novo. A máquina gira em torno do seu próprio eixo. Chegando ao ponto de determinar o consumo, afasta como risco inútil aquilo que ainda não foi experimentado. Os cineastas consideram com suspeita todo manuscrito atrás do qual não encontrem um tranquilizante best-seller. Mesmo por isso sempre se fala de ideia, novidade e surpresa, de alguma coisa que ao mesmo tempo seja plenamente familiar sem nunca ter existido. Para isso servem o ritmo e o dinamismo. Nada deve permanecer como era, tudo deve continuamente fluir, estar em movimento. Pois só o triunfo universal do ritmo de produção e de reprodução mecânica garante que nada mude, que nada surja que não possa ser enquadrado.  (ADORNO, 2010, p.27)
      A indústria cultural é a indústria do divertimento e o seu poder sobre os consumidores é mediado pela diversão. Para Adorno (2010, pp.30-31) a diversão “é procurada pelos que querem se subtrair aos processos de trabalho mecanizado, para que estejam de novo em condições de enfrentá-lo”. Nas formas de diversão oferecidas pela indústria do entretenimento não pode haver reflexão ou deve existir o mínimo de reflexão possível, para que o consumidor cultural não pense, não trabalhe com a própria cabeça, que descanse apenas a fadiga do trabalho, restaurando suas forças para desempenhar novamente o seu trabalho alienado. A consolidação da indústria cultural permite que a mesma produza as necessidades dos consumidores. O que a indústria do divertimento busca é fazer com que os explorados, oprimidos, reprimidos, alienados de suas vidas esqueçam a dor, deixem de pensar. “Divertir-se significa estar de acordo.” (ADORNO, 2010, p.41). A diversão é uma forma alienada de prazer. O hobby é o tempo livre coisificado. Os hobbies representam a extensão da coisificação do trabalho para o tempo livre, pois eles também são marcados pelos interesses de lucro, pela lógica capitalista (ADORNO, 2010, p.106). Para Adorno (2010, p.105), os hobbies são ocupações nas quais as pessoas se jogam só para matar o tempo. O tempo livre aumentou consideravelmente com as novas invenções, graças às novas tecnologias. Mas a sociedade burguesa na época do capitalismo imperialista produz nas pessoas o atrofiamento da fantasia. As pessoas não sabem o que fazer com o seu tempo livre (ADORNO, 2010, pp.110-111). Uma das maiores conquistas da humanidade que foi a diminuição das horas de trabalho converteu-se numa derrota, pois, de acordo com a moral do trabalho vigente, o tempo não dedicado à produção serve principalmente para restaurar a força de trabalho. A solução para esse problema do atrofiamento da fantasia, criado pela própria sociedade contemporânea, é a oferta do negócio do tempo livre. O sistema destruiu nas pessoas a capacidade criativa que poderia ser empregada no seu ócio. O próprio tempo livre foi alienado. A indústria do entretenimento possibilita que o capital capture a parte de tempo livre do homem, tornando a totalidade da vida humana uma mercadoria. Segundo Adorno (2010, p.85): “Quanto mais completamente as ordens sociais contemporâneas (...) se apropriam dos processos de vida, inclusive do ‘ócio’, tanto mais se imprime a todos os fenômenos a marca da ordem”. Os produtos culturais se proliferam numa sociedade em que a diversão se tornou o mecanismo de acesso fácil à felicidade instantânea, mesmo que momentânea, e que as informações circulam em ritmo acelerado, criando nas pessoas a necessidade de “consumi-las”. A cultura de massas captura toda revolta e os excluídos são convencidos da sua insuficiência. Isso é bastante claro em relação aos artistas que não se rendem ao que é imposto pela indústria cultural como padrão estético, temático e ideológico.
            O tempo livre conquistado pela redução do tempo de trabalho necessário cria um espaço de liberdade potencialmente perigoso ao sistema repressivo, tornando-se necessário, na última etapa da sociedade industrial, o desenvolvimento de uma indústria do ócio. É o processo que Rouanet retrata:
Foi somente na última etapa da sociedade industrial que se tornou necessário o desenvolvimento de uma indústria do ócio, que penetrasse o próprio domínio da vida privada. Agora o tempo livre já assume uma proporção importante da existência, o que engendra um espaço de liberdade que pode revelar-se perigoso para o sistema repressivo. (ROUANET, 2001, p.232)


Capítulo 3:
A racionalidade tecnológica e o atrofiamento da fantasia

Eu sempre achei que era vivo
Parafuso ou fluido em lugar de articulação
Até achava que aqui batia um coração
Nada é orgânico, é tudo programado
E eu achando que tinha me libertado
Mas lá vem eles novamente e eu sei o que vão fazer:
Reinstalar o sistema
Pense, fale, compre, beba
Leia, vote, não se esqueça
Use, seja, ouça, diga
Tenha, more, gaste, viva
Pitty

O tédio é a maior expressão do atrofiamento da fantasia. O desamparo sentido pelas pessoas no seu tempo livre é a evidência de que o indivíduo massificado é um homem mutilado, incapaz de fazer de sua vida o que bem entender. O desespero sentido pela massa de indivíduos atomizados da sociedade contemporânea se manifesta no tédio e na entrega voluntária do seu tempo livre à indústria cultural, para que, literalmente, salve suas vidas. As pessoas escolhem o suicídio intelectual e a entrega da totalidade de sua vida aos capitalistas para fugir talvez do suicídio, da morte do seu corpo físico, diante de uma existência melancólica. Para Adorno, o tédio é produto da divisão social do trabalho e do atrofiamento da fantasia:
O tédio existe em função da vida sob a coação do trabalho e sob a rigorosa divisão do trabalho. Não teria que existir. Sempre que a conduta no tempo livre é verdadeiramente autônoma, determinada pelas próprias pessoas enquanto seres livres, é difícil que se instale o tédio; tampouco ali onde elas perseguem seu anseio de felicidade, ou onde sua atividade no tempo livre é racional em si mesma, como algo em si pleno de sentido. (...) Se as pessoas pudessem decidir sobre si mesmas e sobre suas vidas, se não estivessem encerradas no sempre-igual, então não se entediariam. Tédio é o reflexo do cinza objetivo. (...) Em íntima relação com o tédio está o sentimento, justificado ou neurótico, de impotência: tédio é o desespero objetivo. Mas, ao mesmo tempo, também a expressão de deformações que a constituição global da sociedade produz nas pessoas. A mais importante, sem dúvida, é a detração da fantasia e seu atrofiamento. A fantasia fica tão suspeita quanto a curiosidade sexual e o anseio pelo proibido, assim como dela suspeita o espírito de uma ciência que já não é mais espírito. Quem quiser adaptar-se, deve renunciar cada vez mais à fantasia. Em geral, mutilada por alguma experiência da primeira infância, nem consegue desenvolvê-la. A falta de fantasia, implantada e insistentemente recomendada pela sociedade, deixa as pessoas desamparadas em seu tempo livre. (ADORNO, 2010, pp.110-111)
            Para compreender melhor o conceito de fantasia, é preciso recorrer a Freud e Marcuse. Sigmund Freud, em O mal-estar na civilização, trata da questão da sublimação dos instintos como uma técnica para afastar o sofrimento (FREUD, 2006, p.87). Para Freud: “Obtém-se o máximo quando se consegue intensificar suficientemente a produção de prazer a partir das fontes do trabalho psíquico e intelectual” (FREUD, 2006, p.87). Ele cita como exemplo a alegria do artista em criar, ao “dar corpo às suas fantasias”. A arte e a ciência são formas de sublimação dos instintos, de deslocamento de libido, canalização ou reorientação dos objetivos instintivos, dos desejos. A arte é sublimação e imaginação. É uma forma de satisfação obtida através da fantasia. A satisfação, segundo Freud, pode ser obtida “através de ilusões, reconhecidas como tais, sem que se verifique permissão para que a discrepância entre elas e a realidade interfira na sua fruição” (FREUD, 2006, p.88). Essas ilusões tem origem na imaginação. É importante destacar que, para Freud, e de acordo com o que escreve em O futuro de uma ilusão: “Uma ilusão não é o mesmo que um erro; tampouco é necessariamente um erro” (FREUD, 2006, p.39). Na verdade, a característica principal das ilusões é que elas derivam de desejos humanos. Para Freud: “As ilusões não precisam ser necessariamente falsas, ou seja, irrealizáveis ou em contradição com a realidade”(FREUD, 2006, p.40). Marcuse escreve em Eros e Civilização que a fantasia “liga as mais profundas camadas do inconsciente aos mais elevados produtos da consciência (arte), o sonho com a realidade; preserva os arquétipos do gênero (...) as imagens tabus da liberdade.” (MARCUSE, 1999, pp.132-133). Para Marcuse: “A imaginação artística modela a ‘memória inconsciente’ da liberdade que fracassou, da promessa que foi traída” (MARCUSE, 1999, p.135). A fantasia permanece subordinada ao princípio de prazer e se mantém autônoma em relação ao princípio da realidade vigente. “A fantasia não só desempenha um papel constitutivo nas manifestações perversas da sexualidade; como imaginação artística, também vincula as perversões às imagens de liberdade e gratificação integrais” (MARCUSE, 1999, p.62). A arte autêntica preserva a recordação, impede que seja silenciada a memória, deixa viva a lembrança do mal, mas revela o belo e a outra realidade possível. Para Marcuse (2007, p.60), a qualidade de beleza na sua forma mais sublime é o Eros político e se expressa nas obras de arte que reconhecem o terror, o chamam pelo seu nome, para se denunciar; na “criação de uma forma estética, em que o grito sobre o horror do fascismo não se asfixia”. O mundo da arte não é nem o mundo concreto da realidade nem um mundo de mera fantasia. O mundo de uma obra de arte contém os elementos existentes na realidade concreta, mas é uma realidade fictícia. A arte se vincula ao princípio de prazer, invoca a lógica da gratificação e desafia o princípio de razão predominante. Na civilização, o princípio do prazer cede lugar para o princípio da realidade. O princípio do prazer é o programa do indivíduo, enquanto o princípio da realidade é o programa da civilização, isto é, o princípio que rege a civilização. Ainda assim, a civilização é um processo a serviço de Eros. Mais precisamente: ela é produto da dialética entre Eros, o instinto de vida, e o instinto de morte. Toda a vida consiste da luta entre o instinto de vida e o instinto de destruição. A evolução da civilização é a luta da espécie humana pela vida. A civilização é ainda sublimação e repressão. A civilização é constituída sobre a renúncia à satisfação dos instintos. E é exatamente essa renúncia aos instintos na forma de sublimação que constitui a cultura: “A sublimação do instinto constitui um aspecto particularmente evidente do desenvolvimento cultural” (FREUD, 2006, p.103). E Freud prossegue: “é ela que torna possível às atividades psíquicas superiores, científicas, artísticas ou ideológicas, o desempenho de um papel tão importante na vida civilizada”. Para Marcuse, emIdeologia da Sociedade Industrial, o universo artístico é de ilusão, de aparência, mas “essa aparência é semelhança com uma realidade que existe como ameaça e a promessa da realidade estabelecida”(MARCUSE, 1967, p.220). Assim como Freud, Marcuse não reduz a ilusão a erro ou falsidade, buscando o valor de verdade da imaginação:
O valor de verdade da imaginação relaciona-se não só com o passado, mas também com o futuro; as formas de liberdade e felicidade que invoca pretendem emancipar a realidade histórica. Na sua recusa em aceitar como finais as limitações impostas à liberdade e à felicidade pelo princípio de realidade, na sua recusa em esquecer o que pode ser, reside a função crítica da fantasia. (MARCUSE, 1999, p.138)
A função crítica da fantasia se manifesta na preservação da verdade da Grande Recusa, “o protesto contra a repressão desnecessária, a luta pela forma suprema de liberdade” (MARCUSE, 1999, p.139). Na esfera da fantasia, as aspirações de liberdade e de felicidade do homem, de realização integral, de gratificação, reprimidas pela razão, tornam-se racionais.
A fantasia é cognitiva na medida em que preserva a verdade da Grande Recusa ou, positivamente, na medida em que protege, contra toda a razão, as aspirações de realização integral do homem e da natureza, as quais são reprimidas pela razão. Na esfera da fantasia, as imagens irracionais de liberdade tornam-se racionais, e as ‘profundezas vis’ da gratificação instintiva assumem uma nova dignidade. (MARCUSE, 1999, p.147)
Na obra A dimensão estética, também de Marcuse, o autor reafirma o caráter crítico da verdadeira arte e a importância da memória, da recordação, a denúncia da realidade existente e de todas as suas promessas que foram traídas, a projeção da imagem daquilo que o mundo pode ser, daquilo que a vida deve ser como sendo elementos constitutivos da imaginação artística: “O que se tornou forma na obra de arte já aconteceu: é recordado, reapresentado. (...) Nesta recordação, a arte reconheceu o que é e o que podia ser, dentro e fora das condições sociais.” (MARCUSE, 2007, p.63). A sublimação estética expressa os sonhos de felicidade da humanidade. A arte é manifestação da fantasia, processo mental ligado ao princípio de prazer, e tem uma qualidade utópica: ela aponta para o que a realidade pode ser, denuncia o que é o mundo, mostrando o que devia e podia ser. Para Marcuse (2007, p.66): “A utopia, que vem à manifestação na grande arte, nunca é a simples negação do princípio da realidade, mas a sua preservação transcendente em que o passado e o presente projetam a sua sombra na realização.”. Para Herbert Marcuse, a “autêntica utopia baseia-se na memória”. Marcuse invoca a força da memória contra o esquecimento. Para ele, “esquecer os sofrimentos do passado e a felicidade passada torna mais fácil a vida sob um princípio de realidade repressiva” (MARCUSE, 2007, p.67). A arte combate o esquecimento, combate a reificação, “fazendo falar, cantar e talvez dançar o mundo petrificado” (MARCUSE, 2007, pp.66-67).  A consciência reificada ganha ainda mais força com a racionalidade administrativa da ordem vigente. A dominação sob a racionalidade tecnológica abarca a totalidade da vida humana e integra toda oposição. As falsas necessidades, que perpetuam a miséria, o trabalho alienado e a injustiça, têm um conteúdo e uma função sociais determinados por forças externas ao indivíduo; são necessidades repressivas, mesmo quando o indivíduo se identifica e se satisfaz com elas, pois o mesmo não tem controle algum sobre essas necessidades e as forças que as engendram. A libertação exige a consciência da servidão e o abandono da satisfação repressiva. A alienação artística é uma alienação interposta, a transcendência consciente da existência alienada e as imagens da alienação artística lembram e preservam as possibilidades derrotadas e as esperanças não concretizadas. Segundo Marcuse (1967, p.74): “A ficção dá aos fatos seus verdadeiros nomes (...) a ficção subverte a experiência cotidiana, mostrando que ela é mutilada e falsa.”. O atrofiamento da fantasia e o consequente enfraquecimento de sua função crítica e a reificação cada vez mais profunda das consciências dos homens, o seu aprisionamento nas categorias fetichistas, atingem o seu máximo grau na sociedade unidimensional. A legitimação da sociedade industrial avançada perante os indivíduos está baseada na opulência: “O sistema interioriza nas consciências, não mais valores ascéticos que levavam os indivíduos a aceitar a frustração de suas necessidades, mas as próprias necessidades, apresentadas como valores em si mesmos.” (ROUANET, 2001, p.230). A alienação artística é sublimação, mas, na realidade tecnológica, a cultura superior é dessublimada, transformada em popular e as imagens culturais, antes irreconciliáveis com o princípio da realidade, são invalidadas. Na realidade tecnológica, além da dessublimação da cultura, a sexualidade também é liberada. O princípio do prazer absorve o princípio da realidade. No mundo romântico, pré-técnico, a libido transcendia as zonas erógenas imediatas. O ambiente no qual o indivíduo podia obter prazer foi reduzido na sociedade industrial. Toda uma dimensão da atividade humana foi deserotizada. Na realidade tecnológica, a energia erótica vem diminuindo e a energia sexual vem se intensificando. O alcance e a necessidade da sublimação são limitados e reduzidos. Tanto a liberação e intensificação da sexualidade quanto a liberação da arte e da cultura superior para os negócios e a distração são exemplos de dessublimação repressiva. A popularização da filosofia, da grande arte, a música erudita usada como música de fundo e a venda de clássicos da literatura e da filosofia na banca de jornal privam esses artistas e filósofos de sua força antagônica. O Marx vendido nas bancas não é mais uma ameaça. A dessublimação repressiva equivale à gratificação repressiva das necessidades reais e fictícias dos indivíduos, à satisfação imediata e à liberalização dos impulsos associais, como a libido, libidinizando as mercadorias, e manipulando as pulsões sexual e agressiva, liberando o Id contra o Ego. A sociedade unidimensional é capaz de gerir a libido e administrar a pulsão de morte. A liberalização sexual é acompanhada de uma contração de Eros, reduzido à sexualidade. O sistema consegue deserotizar a vida e liberalizar o sexo. A sociedade industrial se baseia na intensificação do progresso técnico. Isso só é possível graças à capacidade desenvolvida pela civilização industrial avançada de manipular a pulsão de morte. A pulsão agressiva é sublimada na forma de progresso técnico. Nesse ponto, é importante deter a atenção para o fato de que o controle do homem sobre a natureza implica na construção de uma natureza humanizada, mas que, para ser construída, implica na destruição anterior, na violação da natureza:
As técnicas proveem as próprias bases do progresso; a racionalidade tecnológica estabelece o padrão mental e comportamental para o desempenho produtivo, e o ‘poder sobre a natureza’ tornou-se praticamente idêntico à civilização. (...) Certo, o desvio da destrutividade do ego para o mundo externo garantiu o progresso da civilização. Contudo, a destruição extrovertida não deixa de ser destruição: os seus objetos são, na maioria dos casos, concreta e violentamente acometidos, privados de sua forma e reconstruídos só depois da destruição parcial; as unidades são divididas à força e suas partes componentes compulsoriamente redistribuídas. A natureza é literalmente ‘violada’. Somente em certas categorias de agressividade sublimada (como na prática cirúrgica) tal violação fortalece diretamente a vida do seu objeto. A destrutividade, em extensão e intenção, parece ser mais diretamente satisfeita na civilização do que a libido. (MARCUSE, 1999, p.89)
      Rouanet ilustra as formas sublimadas e não-sublimadas de agressividade: “Formas não-sublimadas, nas guerras, aventuras coloniais e repressão violenta dos dissidentes internos, e formas sublimadas, através do progresso técnico” (ROUANET, 2001, pp.234-235). Essa visão de conquista da natureza que assumiu o seu caráter mais alienado sob a racionalidade técnica, já havia sido criticada por Engels, em sua obra Humanização do Macaco pelo Trabalho:
Mas não nos regozijemos demasiadamente em face dessas vitórias humanas sobre a Natureza. A cada uma dessas vitórias, ela exerce sua vingança. Cada uma delas, na verdade, produz, em primeiro lugar, certas consequências com que podemos contar; mas, em segundo e terceiro lugares, produz outras muito diferentes, não previstas, que quase sempre anulam essas primeiras consequências. (...) E assim, somos a cada passo advertidos de que não podemos dominar a Natureza como um conquistador domina um povo estrangeiro, como alguém situado fora da Natureza; mas sim que lhe pertencemos, com a nossa carne, nosso sangue, nosso cérebro; que estamos no meio dela; e que todo o nosso domínio sobre ela consiste na vantagem que levamos sobre os demais seres de poder chegar a conhecer suas leis e aplicá-las corretamente. (ENGELS, 1979, pp.223-224)
      Marcuse faz uma advertência contra o fetichismo tecnológico, afirmando o seguinte: “A técnica, como um universo de instrumentos, pode aumentar tanto a fraqueza como o poder do homem.”(MARCUSE, 1967, p.217). Portanto, a questão não é somente se a técnica avança, mas como avança; se é o homem, se é uma comunidade de homens livres, que controla a técnica a serviço do bem-estar e da verdadeira felicidade ou se o progresso técnico está a serviço da perpetuação da destruição e da alienação. Na atualidade, a conquista científica da natureza é usada para conquistar o homem cientificamente. Na sociedade unidimensional, “o aparato produtivo tende a tornar-se totalitário (...) A tecnologia serve para instituir formas novas, mais eficazes e mais agradáveis de controle social e coesão social.” (MARCUSE, 1967, p.18). A ideia de produtividade também é fundamental no quadro de valores constitutivos da civilização industrial: “(...) a produtividade designa o grau de domínio e transformação da natureza, a progressiva substituição de um meio natural incontrolado por um meio tecnológico controlado.”(MARCUSE, 1999, p.143). A ligação entre o instinto de destruição e o progresso técnico é evidente. Como o sistema atual se baseia na intensificação do progresso técnico, é possível afirmar que o desenvolvimento da tecnologia depende da manipulação científica do instinto de morte pela tecnocracia no poder.
Supondo-se que o Instinto de Destruição (em última análise, o Instinto de Morte) seja um grande componente da energia que alimenta a conquista técnica do homem e da natureza, parece que a crescente capacidade da sociedade para manipular o progresso técnico também aumenta a sua capacidade para manipular e controlar esse instinto, isto é, para satisfazê-lo ‘produtivamente’.  (MARCUSE, 1967, p.88)
      A compreensão exata do que vem a ser a racionalidade tecnológica permite um entendimento mais profundo de como essa racionalidade a serviço da forma atual de dominação atua no atrofiamento da fantasia, tornando os indivíduos incapazes de rejeitar a diversão oferecida pelos capitalistas no seu tempo livre. Se a sublimação estética nasce da renúncia à gratificação imediata dos instintos e o terreno da arte manipula e dá forma aos conteúdos da imaginação e os desejos e necessidades criados pelo capitalismo monopolista são satisfeitos, então, existe um empobrecimento da produção cultural e de sua função crítica. A única expressão artística permitida é aquela que é entretenimento, mero relaxamento passivo para a recuperação das energias físicas e mentais para a execução do trabalho alienado de forma mais produtiva. A própria necessidade de sublimação é reduzida: “Assim, diminuindo a energia erótica e intensificando a energia sexual, a realidade tecnológica limita o alcance da sublimação” (MARCUSE, 1967, p.83). O instinto de morte é manipulado nas suas formas sublimadas e não-sublimadas e fortalecido pelos imperativos do progresso técnico. A libido é liberada nos marcos da sociedade repressiva e, portanto, cumpre, em geral, uma função conservadora, tornando agradável a adesão ao sistema. A vida mais agradável, mesmo nos marcos da exploração e da alienação, da impossibilidade de realização de todas as potencialidades humanas, está na raiz da servidão voluntária que prevalece na sociedade contemporânea: “Essa mobilização e administração da libido pode ser a responsável por muito da submissão voluntária”(MARCUSE, 1967, p.85). A sociedade industrial contemporânea opera com um maior grau de liberdade sexual graças à redução do trabalho físico pesado, ao cultivo da beleza e higiene física e à disponibilidade de roupas atraentes e baratas e, portanto, acessíveis aos trabalhadores. A administração da libido gera a submissão voluntária e a racionalidade do protesto é enfraquecida. Na sociedade orientada pela racionalidade tecnológica prevalece a consciência feliz e a atrofia dos órgãos mentais, barrando a percepção clara das contradições sociais e as alternativas históricas. Mas Marcuse não condena a liberdade sexual; é entusiasta dela, na verdade. O que ele condena é a liberação da sexualidade reprimida dentro do domínio da sociedade repressiva, sem derrotá-la, pois essa liberação sexual é funcional para o sistema. Nessas condições,
(...) a libido continua acusando a marca da supressão e manifesta-se nas abomináveis formas tão bem conhecidas na história da civilização; nas orgias sádicas e masoquistas das massas desesperadas, das ‘elites da sociedade’, dos bandos famintos de mercenários, dos guardas de presídios e campos de concentração. Tal descarga de sexualidade fornece uma saída periodicamente necessária para a frustração insuportável; robustece, mais do que debilita, as raízes da coação instintiva; consequentemente, tem sido usada, repetidas vezes, como um instrumento apropriado para os regimes supressivos. (MARCUSE, 1999, pp.177-178) 
No texto de Habermas, Técnica e Ciência como “Ideologia”, é possível encontrar alguns subsídios para uma melhor compreensão da relação entre a tecnologia e a sociedade atual. A ciência e a técnica transformaram-se na primeira força produtiva no capitalismo tardio. As forças produtivas sempre foram o motor da evolução social e tem um potencial de libertação, mas deixam de ter esse caráter na medida em que o desenvolvimento incessante das forças produtivas se tornou dependente de um progresso técnico-científico, que legitima a dominação. A tecnologia, hoje, proporciona a racionalização da falta de liberdade do homem e a impossibilidade de ser autônomo.
A consciência tecnocrática não pode, pois, basear-se numa repressão coletiva do mesmo modo que as velhas ideologias. Por outro lado, a lealdade das massas só pode obter-se por meio de compensações destinadas à satisfação de necessidades privatizadas. A interpretação das realizações pelas quais se justifica o sistema não pode, em princípio, ser política: refere-se imediatamente a distribuições neutras quanto à sua aplicação de dinheiro e de tempo livre e, mediatamente, à justificação tecnocrática da exclusão das questões práticas(HABERMAS, 1968, p.81)
            A tecnocracia é a “forma social na qual uma sociedade industrial atinge o ápice de sua integração organizacional” (ROSZAK, 1972, p.19). Na tecnocracia, todas as atividades humanas exigem a atenção de peritos com treinamento especial. Segundo Roszak (1972, p.20), “a tecnocracia é o regime dos especialistas – ou daqueles que podem empregar os especialistas.” A tecnocracia amplia sua base absorvendo seus desafiantes. A consciência tecnocrática é, usando os termos de Lukács, uma consciência reificada, e, segundo Roszak, o regime da tecnocracia é um regime totalitário, assim:
A característica principal do regime dos especialistas está no fato de que, embora possua amplo poder coercitivo, ele prefere extrair-nos submissão explorando nossa profunda lealdade para com o cientificismo e manipulando as seguranças e bens materiais que a ciência nos deu(ROSZAK, 1972, p.22)
Em Marcuse, esse novo totalitarismo, que pode existir junto com a democracia de massa, é explicitado do seguinte modo:
Pois ‘totalitária’ não é apenas uma coordenação política terrorista da sociedade, mas também uma coordenação técnico-econômica não-terrorista que opera através da manipulação das necessidades por interesses adquiridos. Impede, assim, o surgimento de uma oposição eficaz ao todo. (MARCUSE, 1967, pp.24-25)
Como resposta a esse totalitarismo, que se baseia na eficácia da introjeção democrática e na satisfação das necessidades, Marcuse redefine o conceito de Utopia, pois, segundo ele, “a libertação é a mais realista, a mais concreta de todas as possibilidades históricas e, ao mesmo tempo, a mais racionalmente, mais eficazmente reprimida – a possibilidade mais abstrata e remota” (MARCUSE, 1999, p.16). Já Habermas, que enxerga em Marcuse, Benjamin, Adorno, Horkheimer e no jovem Marx a ideia presente na mística judaica de uma “ressurreição da natureza caída” (HABERMAS, 1968, p.50), defende, no lugar da opinião pública despolitizada do capitalismo tardio, a formação de uma vontade coletiva contra a irracionalidade da dominação. Segundo Habermas (1968, pp.105-106): “A irracionalidade da dominação, (...), só poderia ser dominado através da formação de uma vontade coletiva, que se ligue ao princípio de uma discussão geral e livre de domínio.”. De qualquer modo, seja pela ação política democrática, da constituição de uma vontade geral entre indivíduos livres, seja pela ação política “utópica”, revolucionária, a oposição verdadeira à realidade existente só é possível por meio da memória viva do passado, do presente e do futuro, das promessas e das traições, dos limites e das possibilidades, porque é por meio do esquecimento também que a servidão voluntária é conquistada. Nesse sentido, a arte, tal como pensada por Marcuse, cumpre um papel fundamental, e talvez mesmo a filosofia:
Essa capacidade para esquecer – que em si mesmo já é o resultado de uma longa e terrível educação pela experiência – é um requisito indispensável da higiene mental e física, sem o que a vida civilizada seria insuportável; mas é também a faculdade mental que sustenta a capacidade de submissão e renúncia. Esquecer é também perdoar o que não seria perdoado se a justiça e a liberdade prevalecerem. Esse perdão reproduz as condições que reproduzem injustiça e escravidão: esquecer o sofrimento passado é perdoar as forças que o causaram – sem derrotar essas forças. As feridas que saram com o tempo são também as feridas que contêm o veneno. Contra essa rendição ao tempo, o reinvestimento da recordação em seus direitos, como um veículo de libertação, é uma das mais nobres tarefas do pensamento. (MARCUSE, 1999, p.200)
Outra questão inquietante sobre o tempo presente é que o ethos da objetividade domina uma legião de cientistas e militares, que fazem o seu trabalho como lhes é ordenado, ignorando que suas armas e invenções destruam vidas humanas, não demonstrando qualquer interesse por essas vidas nem qualquer empatia (ROSZAK, 1972, p.226).  
 A substância do trágico na Grécia antiga residia na oposição do indivíduo à sociedade (ADORNO, 2010, p.55). A sociedade total promove a liquidação do indivíduo. O capitalismo tardio gera uma massa de autômatos, que são manipulados e se deixam manipular; são pré-condicionados a ser manipuláveis, ao mesmo tempo que se escolhem convenientemente como manipulados pelo mundo tecnológico que os satisfaz.
            Os indivíduos vazios e amputados da sociedade industrial avançada podem ser bastante tolerantes com a produção de meios de destruição em massa e com um progresso técnico que violenta a natureza num ritmo e extensão nunca antes vistos. O vazio de sua existência é preenchido com os programas de auditório dos domingos na televisão e com as músicas que tocam incessantemente no rádio até que se tornem do gosto do público. Mas “a mera ausência de toda a propaganda e de todos os meios doutrinários de informação e diversão lançaria o indivíduo num vazio traumático” (MARCUSE, 1967, p.226). O indivíduo massificado é incapaz de ser autônomo e de determinar por si mesmo o seu tempo livre, assim como a maioria dos trabalhadores é incapaz de pensar o mundo do trabalho sem a figura do patrão. A necessidade de se ter alguém que lhe ordene como e quando deve se divertir e trabalhar é introjetada desde cedo nos trabalhadores-consumidores do capitalismo tardio. Mesmo o uso da palavra indivíduo se torna irônica nesse contexto social, parecendo ser melhor descrever aquilo que os indivíduos realmente são na realidade tecnológica – trabalhadores-consumidores -, pessoas que existem unicamente para produzir e consumir aquilo que os capitalistas determinam, e cada vez mais rápido e em mais larga escala. A quantidade de coisas que são produzidas e compradas serve para trazer algum alívio diante da vida vazia de subjetividade. Assim como Adorno, Roszak também faz uma reflexão acerca da diferença entre hobbye atividade criativa realizadora:
Na melhor das hipóteses, numa cultura predominantemente científica a pessoa de inclinações artísticas vive uma existência esquizoide, obrigando-se a encontrar um canto escondido de sua vida no qual aplicar seus momentos de lazer a alguma atividade criativa. Na sociedade tecnocrática, tal estratégia esquizoide está-se transformando rapidamente em praxe. Os homens constroem carreiras e moldam seus mundos nos papéis públicos de técnicos e especialistas. Guardam para si próprios seus gestos criativos, como prazeres privados e irrelevantes. Tais gestos constituem uma terapia pessoal; ajudam a manter-nos um pouco mais sãos e resistentes neste mundo sinistro; mas os homens não permitem que tais passatempos definam sua identidade profissional ou social. (ROSZAK, 1972, p.256)
Roszak descreve uma realidade na qual o homem não pode realizar suas potencialidades, não pode apostar nas suas verdadeiras inclinações, deve se submeter (e isso não é algo exclusivo de regimes autoritários, mas vigora também nos regimes democráticos) aos interesses dominantes na escolha de sua carreira e na forma de conduzir sua vida. A sua atividade criativa se torna uma mentira, porque o seu caráter antagônico em relação à realidade existente é esvaziado e a atividade criativa se torna mera distração ou terapia. Toda a paixão que brotava da alma dos grandes gênios e se convertia em obras de arte é retirada do espírito dos homens sob a ordem tecnocrática e suas realizações se tornam imitações baratas das grandes obras de arte do passado, formas sem conteúdo, ajustando-se às necessidades terapêuticas para que o indivíduo permaneça funcional e possa encarar a vida alienada, mas eliminando todo potencial de transcendência e toda a contradição com o existente. Assim, Roszak prossegue:
Prezamos nossas válvulas criativas, mas aprendemos a mantê-las no lugar marginal que lhes compete. Ou talvez seguimos uma carreira irrepreensível como especialistas acadêmicos na categoria oficial e aprovada das ‘humanidades’. Desdenhamos ou jamais percebemos o fato de que aquilo que para nós constitui problemas interessantes e distrações excitantes foram paixões escravizantes para as grandes almas que criaram as matérias-primas de nossos exercícios de bom gosto cultural. (ROSZAK, 1972, p.256)
            Essas são as condições estruturais, esse é o processo histórico que faz recuar a imaginação, que atrofia a fantasia e que torna o indivíduo massificado uma presa fácil para aqueles que vendem diversão. A mercantilização do ócio só é possível na escala atual, porque a capacidade de resistência dos homens, não só contra a ideologia dominante, mas contra o próprio condicionamento imposto ao organismo humano baseado nas satisfações instintivas, foi reduzida. A manipulação da consciência e a manipulação dos instintos criaram seres humanos de consciência reificada e libidinalmente ligados ao sistema social vigente. As pessoas desejam o que o capitalismo tardio tem para oferecer, porque foram condicionadas a desejar somente aquilo que ele tem para oferecer. O termo tempo livre também perdeu qualquer significado enquanto espaço de liberdade e de autonomia do homem em relação à exploração do trabalho. A indústria cultural é o instrumento criado pela sociedade unidimensional. A sociedade atual reconcilia as forças que se opõem ao sistema e refuta e etiqueta como irracional toda a transcendência, todo o protesto contra uma civilização que se apresenta como realizadora de todos os desejos humanos. A indústria cultural, a indústria do entretenimento, a indústria do divertimento é também a indústria do ócio. Ela existe para afastar o perigo que representaria o tempo livre dos homens para eles mesmos. A autonomia do indivíduo deve ser sacrificada em nome do progresso.
           


Conclusão

      O homem, enquanto ser genérico, se define e se constitui pelo trabalho, sua atividade vital. O indivíduo é regido pelo princípio do prazer. O trabalho sob a divisão social do trabalho, e, portanto, alienação, é mortificação. A gratificação só é possível num mundo de alienação na satisfação das necessidades mais básicas, nas funções animais, e na forma de prazer rebaixado, inserido na divisão do trabalho e na propriedade privada dos meios de produção. A especialização da atividade produtiva é a mutilação das faculdades humanas, transformando o corpo em mero instrumento de trabalho e o trabalho em mercadoria e apenas um meio para a satisfação de outras necessidades. A alienação da consciência tem início quando a natureza aparece para o homem como uma força estranha e onipotente que aterroriza e oprime o homem. A alienação do trabalho surge com a separação entre trabalho manual e trabalho intelectual. A alienação do tempo livre é um prolongamento da alienação do trabalho sobre o tempo livre com a mercantilização do prazer.
A indústria cultural também pode ser chamada de indústria do ócio, indústria do divertimento, indústria do entretenimento ou indústria da celebridade. Quando a indústria cultural é chamada pelo nome indústria do ócio, o que se pretende enfatizar é o objetivo dos donos do poder ao desenvolverem esse setor específico da indústria capitalista que é invadir o domínio da vida privada dos homens, retirando toda a sua autonomia no seu tempo livre, evitando assim o risco desse tempo de ócio maior no mundo contemporâneo se voltar contra a ordem vigente, que seria abolida caso os homens alcançassem o grau de autonomia e de capacidade reflexiva se o seu tempo fora da produção fosse de fato livre. O termo indústria do entretenimento ou indústria do divertimento expressa o que esse ramo da economia capitalista produz e vende: uma arte de entretenimento, diversão, hobbies.  A diversão vendida por essa indústria é o mesmo que tempo livre coisificado; é um conjunto de atividades imbecilizantes e relaxantes, que preparam o homem contemporâneo para mais uma jornada de trabalho alienado e moldam o seu espírito para a aceitação da vida como ela é. O termo indústria da celebridade diz respeito à relação dessa indústria com o artista contemporâneo e como a fama é fabricada pelos empresários da arte e pelos críticos a seu serviço. A imprensa determina a celebridade de um artista e aqueles que buscam um caminho de liberdade, como artistas independentes e fazendo uma arte autêntica, são privados do direito à glória.
A arte de massas é padronizada.  A cultura superior é apropriada e popularizada e se torna parte da cultura de massas, perdendo a sua força antagônica. A propaganda não é aquilo que existe entre um programa de televisão e outro; os programas é que existem no intervalo entre as propagandas. O rádio e a televisão existem para unir as massas às grandes empresas, ideologicamente e libidinalmente. Os meios de comunicação de massa martelam nas cabeças dos indivíduos massificados aquilo que eles devem desejar. Eles ficam ligados emocionalmente às empresas capitalistas e aos seus produtos e serviços. A própria identidade do homem contemporâneo é construída pela massificação de marcas e exemplares da arte de entretenimento. A publicidade é o óleo que mantém essa máquina funcionando. A função desempenhada pela indústria cultural na reprodução do capital só é rivalizada em importância pela sua função ideológica. Tanto a arte de massas quanto a própria publicidade diretamente cumprem o papel de instrumentos de dominação ideológica na sociedade capitalista contemporânea. Tudo o que existe é devorado pela cultura de massas e não há mais quase nenhum espaço para uma cultura erudita ou uma cultura popular genuína. Assim como a chamada cultura superior, o folclore também foi apropriado pela cultura de massas, esvaziado de seu conteúdo crítico, que existia em oposição à cultura produzida e apreciada pelas classes dominantes. Toda expressão cultural pode ser apreciada agora de forma despreocupada e leve. Aquilo que antes trazia a marca do chicote ou da angústia, da tragédia da vida, do sofrimento humano, da miséria material e espiritual, do esmagamento do indivíduo diante do poder da sociedade ou da opressão sofrida por um povo ou por um classe se tornou entretenimento.
A fantasia é detratada para que os homens identifiquem os produtos da imaginação como irreais e irrealizáveis, porque só o que tem o direito de existir é o que já existe. O progresso seria um desenvolvimento linear da sociedade capitalista industrial avançada. A classe dominante formula um discurso ideológico que tem por objetivo convencer toda a humanidade de que chegamos ao desenvolvimento máximo da civilização e da razão. Qualquer proposta alternativa, que verdadeiramente proponha a subversão da ordem social existente, é encarada como uma ofensa à inteligência e à razão. A racionalidade técnica se apresenta como a encarnação do estágio final da Razão e coloca sob suspeita toda racionalidade que se oponha à racionalidade da dominação. A utopia é combatida e sua realização é apresentada como impossível ou mesmo como indesejável. A consciência tecnocrática, que é a consciência reificada do homem contemporâneo, aprofunda a alienação do homem, que abandona até mesmo a perspectiva de transcender a realidade atual. A especialização se amplia e os especialistas passam a dominar o Estado, as empresas e a sociedade de tal modo que o mundo se torna incompreensível para a grande maioria das pessoas, que encaram a produção intelectual e material desses especialistas como obras de feitiçaria, coisas mágicas e que necessitam ser interpretadas e manipuladas por aqueles que são dotados dos poderes para fazê-lo, poderes adquiridos pela adesão total à ideologia dominante e à razão técnica. Essa situação social produz o atrofiamento da fantasia. O homem sem imaginação fica privado da capacidade cognitiva para usar autonomamente seu tempo de vida e passa a desejar ou trabalhar mais e mais como um workaholic ou levar uma existência baseada na diversão, assumindo muitas vezes uma personalidade infantilizada, consumindo os produtos culturais que a indústria cultural tem a oferecer. Um tipo de pessoa mais equilibrada pode nem ser viciada em trabalho nem ser hedonista e infantil, mas por reconhecer mesmo que inconscientemente o seu vazio interior se contenta em se distrair no seu tempo livre com o entretenimento igualmente vazio oferecido pela indústria cultural. Um tipo um pouco mais “intelectualizado” pode buscar na indústria cultural os produtos da cultura erudita popularizados por ela (e logicamente selecionados e editados para serem absolutamente inofensivos), sem buscar em meios alternativos, produções intelectuais e artísticas que ofereçam um contraponto real à ordem social vigente, sendo pseudointelectuais ou pessoas falsamente intelectualizadas que também aderem ao sistema. O discurso ideológico dominante se dá tanto por meio da palavra quanto por meio dos objetos e todos os produtos que tornam a vida mais confortável também “falam” a favor da manutenção da ordem e contribuem, junto com todos os serviços públicos e privados necessários para uma vida confortável e satisfatória no mundo contemporâneo, para a servidão voluntária, levando o homem massificado a rejeitar a possibilidade de se libertar da dominação de classe no capitalismo tardio.  O tédio que se instala nos momentos de silêncio e de ócio nas pessoas vazias torna necessário ao homem contemporâneo recorrer ao que lhe é oferecido e ao mesmo tempo imposto pela indústria cultural.
Essa conclusão melancólica traz ao menos um desafio e uma promessa de encontrar a vida livre e feliz, porque encarar essa verdade de frente força os indivíduos a compreenderem que, se os capitalistas oferecem a eles dinheiro em troca de seu tempo de vida e de sua energia vital, isso significa que o seu tempo e a sua energia valem mais do que dinheiro e, portanto, buscar o máximo de tempo livre para si é condição para uma vida verdadeiramente humana. Mas como não se trata de uma troca justa entre iguais, o dinheiro determina a subsistência das pessoas e não pode ser eliminado por decreto de suas vidas, não neste mundo. A luta coletiva e a decisão pessoal podem aumentar o espaço de liberdade e garantir, ao mesmo tempo, a existência material do homem. O tempo livre também pode ser apropriado autonomamente, mesmo pelos homens mutilados, amputados em sua capacidade racional e imaginativa, se puderem utilizar os resquícios de individualidade e da memória da libertação na vaga lembrança da utopia perdida que habitam entre os vazios de uma alma humana marcada pelo desejo e pelas necessidades repressivas nela incutidas pela ordem.





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