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terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

Carnaval e Política

O texto é polêmico, então tirem "as crianças da sala". O objetivo não é "causar", "lacrar" ou qualquer outra dessas bobagens pós-modernas. Existe uma onda de ataques ideológicos ao Carnaval de rua que vem de todos os lados e algumas vezes sob aparência progressista e contra a qual não é possível ficar omisso.
Em primeiro lugar, é preciso elucidar algumas questões históricas. É verdade que o samba carioca, assim como o jongo do Sudeste, é expressão da cultura negra. O samba carioca tem suas origens na localidade da Pedra do Sal, no Morro da Conceição, na Zona Portuária do Rio de Janeiro, e é marcado pela resistência cultural das populações removidas pela reforma urbana de Pereira Passos, passando essa população marginalizada a se reunir na região da Cidade Nova, em torno da casa da baiana Tia Ciata. Especificamente sobre os sambas-enredo, eles eram pensados pelo compositor Ismael Silva como formas de comunicação com as massas. O inventário do IPHAN das "Matrizes do Samba no Rio de Janeiro" é um documento que reconhece a importância da cultura negra na vida cultural da cidade do Rio de Janeiro. Desse modo, é inegável que o samba carioca, que dita o ritmo do Carnaval carioca, tem suas origens na cultura negra e que sua preservação, a defesa dessa manifestação cultural e de suas raízes é um ato político.
No estudo que Mikhail Bakhtin fez da cultura popular na Idade Média e no Renascimento ele escreve que os festejos do carnaval ofereciam "uma visão do mundo, do homem e das relações humanas totalmente diferente, deliberadamente não-oficial, exterior à Igreja e ao Estado". E o autor prossegue: "O princípio cômico que preside aos ritos do carnaval, liberta-os totalmente de qualquer dogmatismo religioso ou eclesiástico, do misticismo, da piedade, e eles são além disso completamente desprovidos de caráter mágico ou encantatório (não pedem nem exigem nada). Ainda mais, certas formas carnavalescas são uma verdadeira paródia do culto religioso. Todas essas formas são decididamente exteriores à Igreja e à religião. Elas pertencem à esfera particular da vida cotidiana". Sendo assim, o Carnaval popular não pede licença a qualquer religião ou ao Estado, ele é a manifestação não-oficial e profana das massas, contendo, segundo Bakhtin, um poderoso elemento de jogo. Numa bela passagem, Bakhtin afirma: "Enquanto dura o carnaval, não se conhece outra vida senão a do carnaval. Impossível escapar a ela, pois o carnaval não tem nenhuma fronteira espacial. Durante a realização da festa, só se pode viver de acordo com as suas leis, isto é, as leis da liberdade. O carnaval possui um caráter universal, é um estado peculiar do mundo: o seu renascimento e a sua renovação, dos quais participa cada indivíduo. Essa é a própria essência do carnaval, e os que participam dos festejos sentem-no intensamente". O carnaval é uma festa popular que tem suas origens nas saturnais romanas. Citando novamente Bakhtin: "Em resumo, durante o carnaval é a própria vida que representa, e por um certo tempo o jogo se transforma em vida real. Essa é a natureza específica do carnaval, seu modo particular de existência". Aqui se faz necessário resgatar o conceito de jogo e de lúdico, sem o que se torna impossível compreender o carnaval popular. Como escrevi em outro texto, Jean Chateau afasta a atividade lúdica do conceito de diversão. Chateau escreve que o jogo é sério e que não é mero divertimento, aproximando-se a atitude lúdica da atitude estética. De acordo com Jean Chateau, entregando-se ao jogo, à atividade lúdica, é possível abandonar o mundo da necessidade, criar mundos de utopia e realizar-se plenamente. Sendo assim, o Carnaval é a maior expressão do lúdico na nossa existência nesse mundo de alienação. Diz Bakhtin, remetendo o Carnaval à Europa feudal com sua rígida hierarquia social e entendendo o Carnaval como a segunda vida do povo, a sua vida festiva e temporariamente desalienada: "Contrastando com a excepcional hierarquização do regime feudal, com sua extrema compartimentação em estados e corporações na vida diária, esse contato livre e familiar era vivido intensamente e constituía uma parte essencial da visão carnavalesca do mundo. O indivíduo parecia dotado de uma segunda vida que lhe permitia estabelecer relações novas, verdadeiramente humanas, com os seus semelhantes. A alienação desaparecia provisoriamente. O homem tornava a si mesmo e sentia-se um ser humano entre seus semelhantes". Ao contrário do que é difundido pelo senso comum "facebookiano ", o Carnaval não é alienação, é justamente o oposto, ele é a suspensão da realidade do mundo do trabalho alienado e a alegria genuína daqueles que vivem o ano inteiro vergados pela exploração, a alegria de todos os explorados economicamente, oprimidos socialmente e reprimidos politicamente. Em Bakhtin: "Ao contrário da festa oficial, o carnaval era o triunfo de uma espécie de liberação temporária da verdade dominante e do regime vigente, de abolição provisória de todas as relações hierárquicas, privilégios, regras e tabus. Era a autêntica festa do tempo, a do futuro, das alternâncias e renovações. Opunha-se a toda perpetuação, a todo aperfeiçoamento e regulamentação, apontava para um futuro ainda incompleto". A festa carnavalesca "caracteriza-se, principalmente, pela lógica original das coisas 'ao avesso', 'ao contrário', das permutações constantes do alto e do baixo ('a roda'), da face e do traseiro, e pelas diversas formas de paródias, travestis, degradações, profanações, coroamentos e destronamentos bufões. A segunda vida, o segundo mundo da cultura popular constrói-se de certa forma como paródia da vida ordinária, como um 'mundo ao revés'". Essas citações fizeram-se necessárias por causa da forma como tem sido realizados os debates públicos, totalmente baseados no princípio da doxa, da opinião, quando muito em argumentos de autoridade do tipo "lugar de fala" ou mesmo disputando quem tem o título maior. Mas argumentos racionais e fundamentados passam longe dos debates públicos atuais, que nada têm de democráticos e racionais. 
Como vimos, o Carnaval é uma expressão cultural de caráter popular, uma festa popular de origem europeia que no Rio de Janeiro é marcada por forte presença e influência da cultura negra na música e na dança que presidem o Carnaval carioca. O Carnaval é uma festa dionisíaca, lúdica, profana e não-oficial. É um momento em que fazer de conta e brincar de ser feliz é o que importa. Muitos se surpreenderam com o samba politizado da Paraíso do Tuiuti nesse Carnaval de 2018. Isso só mostra o quanto as pessoas desconhecem o Carnaval, que possui essa dimensão de resistência também. Quando o samba canta "Não sou escravo de nenhum senhor/ Meu Paraíso é meu bastião/ Meu Tuiuti o quilombo da favela/ É sentinela da libertação", ele aponta para a ligação entre a escravidão negra do passado e a escravidão assalariada de todos os trabalhadores pobres do presente e a extrema opressão em que vivem os descendentes dos antigos escravos africanos. A arquibancada do Sambódromo vibrou e cantou não só por remeter a uma memória do passado, mas porque esse passado ainda é presente, presente no racismo, na desigualdade racial e social e na forma da exploração capitalista capitaneada atualmente pelo "vampiro neoliberalista". Mas é importante ter cuidado. A função crítica do Carnaval não reside apenas num conteúdo político de um samba, mas na própria forma. Quando o samba da União da Ilha de 2014 "É brinquedo, é brincadeira, a Ilha vai levantar poeira" convidou todos a brincarem e a lembrarem de como é ser criança, resgatou o que é o Carnaval em sua essência: "Hoje a Ilha vem brincar, amor!/ Vem sorrindo cirandar que eu vou/ Dar meia volta, volta e meia no seu coração/ Ser criança não é brinquedo não! (...) Nesse baú da memória/ São tantas histórias é só escolher/ Desperta, encanta sua alma de infância (...) Perder ou ganhar, ganhar ou perder/ Se conectar, jogar e aprender/ Um super-herói pode ser você/ Vem no reino da ilusão, me dê a sua mão (...)". Aquilo que a gente vive só na ilusão, como sublimação na arte, no Carnaval é experiência concreta e podemos voltar a viver segundo o princípio do jogo, como as crianças. Outro tema importante é o das marchinhas de Carnaval. Algumas marchinhas racistas e homofóbicas foram corretamente criticadas, mas me surpreende que músicas que refletem a situação do trabalhador pobre e seu desespero diante de situações como a de despejo de sua casa (incrível que numa cidade que viveu remoções em massa para as obras da Copa do Mundo e das Olimpíadas os ouvidos não sejam sensíveis a essa mensagem) passem despercebidas. Quem não conhece "Daqui não saio": "Daqui não saio/ Daqui ninguém me tira/ Daqui não saio/ Daqui ninguém me tira/ Onde é que eu vou morar?/ O senhor tem paciência de esperar!/ Inda mais com quatro filhos/ Onde é que eu vou parar?/ Sei que o senhor/ Tem razão de querer/ A casa pra morar/ Mas onde eu vou ficar?/ Nesse mundo ninguém/ Pede por esperar/ Mas já dizem por aí/ Que a vida vai melhorar". Quem só enxerga alienação no Carnaval não consegue explicar uma marchinha dessas. A cultura popular é marcada por preconceitos sociais também, que não devem ser naturalizados, mas o esforço dialético que muitos fazem para encontrar na cultura de massas, na produção da indústria cultural um potencial crítico não é o mesmo em relação às manifestações culturais genuinamente populares. Nem mesmo a "invasão bárbara" da indústria cultural no Carnaval de rua com blocos temáticos que retiram todo o protagonismo negro da nossa festa carnavalesca, onde se ouve todo tipo de música menos o samba carioca e o jongo, é severamente criticada. O que me faz duvidar das intenções "problematizadoras". Analisar a arte pelo seu conteúdo também é um erro grave no debate sobre cultura e os blocos de caráter diretamente políticos que reúnem basicamente a esquerda universitária tem muito mais um caráter antipopular e sectário do que propriamente conscientizador. Como se pode ver, contradições existem para todo lado.
Sobre a polêmica lançada pelo Catraca Livre acerca das fantasias que podem e que não podem ser usadas. Acredito que ninguém sério e esclarecido reivindique o direito de usar a fantasia de "nega maluca". O site do Catraca Livre explica muito didaticamente a origem dessa fantasia como forma de caricatura dos negros no século XIX, usada pelos homens brancos com o objetivo de satirizar a população negra, ou seja, tem uma intenção clara de inferiorizar os negros do país. Quanto às tradicionais fantasias de índio/índia, cigano/cigana, embora concorde com o fato de serem estereotipadas, não há muito como fugir do estereótipo  neste caso, não é possível ter uma fantasia de indígena para cada etnia. Além do mais, não se trata aqui de uma tentativa de ofender ou de inferiorizar, muito pelo contrário, as pessoas que usam essas fantasias se sentem bonitas, é uma valorização dessas culturas, dentro dos limites de uma festa popular, não se pode exigir um caráter acadêmico de uma festa popular, isso é coisa de quem realmente desconhece a cultura popular de sua cidade e de seu país, na teoria e na prática. Esse debate é mal colocado quando ele joga a responsabilidade para os foliões, quando as fantasias são produzidas por uma indústria. Eu, por exemplo, que já me fantasiei de bate-bola, bruxo, Morte, pirata, já usei adereços de índio e de pirata, sempre comprei, hoje com minha esposa, na infância com minha mãe, as fantasias e tecidos para fantasias numa loja de Madureira em frente à estação de trem. Quem quiser fazer sugestões de fantasias adequadas à referida loja pode ir lá. Os foliões compram de lojas comerciais a produção de uma indústria. Novamente, a militância pós-moderna alivia para as forças do mercado e joga com a mesma lógica de polícia dos costumes do fundamentalismo religioso. É um erro grave, anti-dialético e anti-dialógico, além de essencialmente sectário e descolado da realidade da maioria. Enquanto figuras da indústria cultural são aplaudidas por venderem uma suposta representatividade (e lucrarem com isso) e são consideradas "lacradoras", a cultura popular é atacada sem dó nem piedade. Mesmo as escolas de samba que atuam dentro de uma lógica mercadológica são perdoadas, porque, afinal, ali se trata de arte, porque o tempo todo se faz reverência às manifestações culturais oficiais e se condena como bárbaras as manifestações do povo trabalhador que não se enquadrem plenamente nos seus conceitos e não atendam a seus interesses políticos e sociais. Um ou outro representante da indústria cultural é eventualmente criticado, mas quase sempre de manifestações culturais ainda um tanto marginais, mesmo que já integrando o mercado cultural, como é o caso do funk. Um profundo elitismo se esconde por trás desses debates e um conservadorismo disfarçado por uma retórica progressista. 
O Carnaval é essencialmente político, mas não no sentido do realismo socialista, de tipo stalinista, mas por ser uma expressão da vida ao avesso, desalienada, lúdica. As contradições, os preconceitos, os equívocos devem ser apontados e muitos abolidos. Uma demanda civilizatória absolutamente correta que se expressou nesse Carnaval foi a campanha contra o assédio sexual, em que as mulheres se posicionaram e se organizaram contra essa barbárie. Mas, como regra geral, é muito importante ter bastante cuidado com os nossos desejos tirânicos de praticar a censura ao outro, podemos nos encontrar involuntariamente no mesmo campo do conservadorismo de direita mais tosco, que foi tanto criticado nos desfiles das escolas de samba desse ano, em especial pela Tuiuti e pela Mangueira.


Rafael Rossi

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