A contadora de histórias
Bia Bedran escreveu, certa vez, o seguinte: “Contando sua própria história e a
do mundo, o homem vem se utilizando da narrativa como um recurso vital e
fundamental. Sem ela a sociabilidade e mesmo a consciência de quem somos não
seria possível. O conto é uma memória da comunidade, em que encontramos lugares
diferentes de olhar e ler o mundo ao praticarmos a arte da convivência”. Quem
nunca parou para ouvir histórias de outro tempo contadas pelos avós ou outras
pessoas mais velhas? Isso é uma forma de se conectar o passado e de compreender
o presente a partir do relato dessa testemunha ocular dos fatos que se encontra
diante de nós na figura da pessoa mais velha. Nós mesmos estamos sempre
contando histórias, para nossos amigos, familiares e até pessoas estranhas que
conhecemos na rua ou na internet. Nesse sentido, é pela comunicação que o homem
se torna esse animal social que somos.
O arqueólogo Pedro Paulo
Funari escreveu em um de seus livros sobre a arte de contar histórias e a
narrativa histórica: “De fato, o homem é um animal que gosta de contar (e de
ouvir) histórias. O que são os romances e contos, as telenovelas e os filmes,
os desenhos animados e as peças de teatro, se não narrativas? Também o passado
só adquire forma como uma narrativa, em um entrelaçar de dados e argumentos
sobre a sucessão dos acontecimentos. Quanto mais recuamos no passado, tanto maior
será a importância do relato, quase como se fosse uma viagem, imaginada e
contada pelos estudiosos”. Nesse sentido, construímos nossa identidade, damos
sentido às nossas vidas, direção aos nossos desejos, compreendemos os outros e
a nós mesmos por meio das várias narrativas que lemos, ouvimos e vemos o tempo
todo. Quem nunca viu um filme que lhe marcou? Quem nunca ouviu uma música que
fez com que se emocionasse? A vida é assim, essas várias histórias que lemos,
vemos e ouvimos fazem parte de nós e definem quem somos. Também é próprio dos
seres humanos querer compartilhar suas experiências; colocamos nossas fotos em
redes sociais, falamos com os colegas aquilo que fizemos no final de semana e
até podemos inventar histórias. De fato, muitas das narrativas mais marcantes
de nossas vidas são histórias inventadas. As obras de ficção do cinema e da TV
marcaram nossa infância, adolescência e juventude. Nós sofremos e nos alegramos
junto com os personagens dessas histórias. Nós torcemos por eles, porque nos
identificamos com os seus desafios, sofrimentos e tragédias. Mas a imaginação
não fica restrita à arte e às histórias inventadas. Também a ciência e a filosofia
contam, muitas vezes, com uma boa dose de imaginação. Quando estudamos sobre a
pré-história da humanidade ou sobre os povos da Antiguidade, temos que tentar
imaginar como viviam, como eram, como era o seu cotidiano, eles não tiravam
selfies, não escreviam sobre suas vidas, não as pessoas comuns, não como nós
fazemos hoje. Tudo o que podemos fazer é, a partir dos vestígios deixados por
eles, imaginar como viviam, amavam e lutavam. Travamos um diálogo vivo com
aqueles que morreram mudos, que foram silenciados pela força irresistível do
tempo. Somos nós, com nossa imaginação e com nossas perguntas, que impedimos
que eles virem pó, que não permitimos que desapareçam enquanto escoam as areias
do tempo. É preciso tentar ver a imagem dos que viveram num tempo sem fotos nem
filmes, enquanto ouvimos as histórias sobre eles; histórias de gladiadores,
escravos, piratas, soldados e heróis. Tudo isso que nos encanta hoje ao vermos
esses mesmos personagens transformados pela magia da fantasia na tela do
cinema.
No século XIX, Thomas
Bulfinch escreveu O Livro da Mitologia,
que em seu prefácio dizia: “Se considerarmos que os únicos ramos úteis do
conhecimento são aqueles que concorrem para o aumento de nosso patrimônio
material ou nosso status social, então a Mitologia não pode ser apresentada
nessa categoria”. Ou seja, o conhecimento da mitologia não é prático, não é útil
num sentido econômico, ninguém pode se tornar mais rico com esse conhecimento e
ouso estender isso ao conhecimento da história. Se vocês conhecerem alguém que
ficou rico pesquisando ou ensinando História, por favor, me apresentem, que eu
quero aprender como se faz. Mas Bulfinch prossegue: “Sem o conhecimento da
Mitologia, boa parte de nossa elegante literatura não pode ser compreendida e
apreciada”. Estendo isso aos filmes. Temos hoje filmes sobre a Guerra de Troia
e o herói Aquiles, filmes sobre Hércules, o poderoso filho de Zeus, nas mais
variadas versões. E temos ainda filmes adolescentes sobre meninos e meninas
semideuses nos dias atuais, como Percy Jackson
e o ladrão de raios. Ou ainda a Mulher-Maravilha, a amazona, uma mulher
guerreira, nascida sob a influência da mitologia grega e transformada em
super-heroína. Os quadrinhos, e agora o cinema com os filmes baseados nas
histórias em quadrinhos, estão cheios de super-heróis saídos diretamente da
mitologia, como o poderoso Thor, da Marvel. Essas narrativas fantásticas nos
inspiram e dão, muitas vezes, significado às nossas vidas.
Referências:
BEDRAN, Bia. A arte
de cantar e contar histórias: narrativas
orais e processos criativos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.
BULFINCH, Thomas. O
Livro da Mitologia: A Idade da Fábula. Tradução: Luciano Alves Meira. 1.ed.
São Paulo: Martin Claret, 2013.
FUNARI, Pedro Paulo; NOELLI, Francisco Silva. Pré-história do Brasil. 4.ed. São
Paulo: Contexto, 2015. – (Repensando a História).
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