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segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

MITOS E NARRATIVAS



A contadora de histórias Bia Bedran escreveu, certa vez, o seguinte: “Contando sua própria história e a do mundo, o homem vem se utilizando da narrativa como um recurso vital e fundamental. Sem ela a sociabilidade e mesmo a consciência de quem somos não seria possível. O conto é uma memória da comunidade, em que encontramos lugares diferentes de olhar e ler o mundo ao praticarmos a arte da convivência”. Quem nunca parou para ouvir histórias de outro tempo contadas pelos avós ou outras pessoas mais velhas? Isso é uma forma de se conectar o passado e de compreender o presente a partir do relato dessa testemunha ocular dos fatos que se encontra diante de nós na figura da pessoa mais velha. Nós mesmos estamos sempre contando histórias, para nossos amigos, familiares e até pessoas estranhas que conhecemos na rua ou na internet. Nesse sentido, é pela comunicação que o homem se torna esse animal social que somos.
O arqueólogo Pedro Paulo Funari escreveu em um de seus livros sobre a arte de contar histórias e a narrativa histórica: “De fato, o homem é um animal que gosta de contar (e de ouvir) histórias. O que são os romances e contos, as telenovelas e os filmes, os desenhos animados e as peças de teatro, se não narrativas? Também o passado só adquire forma como uma narrativa, em um entrelaçar de dados e argumentos sobre a sucessão dos acontecimentos. Quanto mais recuamos no passado, tanto maior será a importância do relato, quase como se fosse uma viagem, imaginada e contada pelos estudiosos”. Nesse sentido, construímos nossa identidade, damos sentido às nossas vidas, direção aos nossos desejos, compreendemos os outros e a nós mesmos por meio das várias narrativas que lemos, ouvimos e vemos o tempo todo. Quem nunca viu um filme que lhe marcou? Quem nunca ouviu uma música que fez com que se emocionasse? A vida é assim, essas várias histórias que lemos, vemos e ouvimos fazem parte de nós e definem quem somos. Também é próprio dos seres humanos querer compartilhar suas experiências; colocamos nossas fotos em redes sociais, falamos com os colegas aquilo que fizemos no final de semana e até podemos inventar histórias. De fato, muitas das narrativas mais marcantes de nossas vidas são histórias inventadas. As obras de ficção do cinema e da TV marcaram nossa infância, adolescência e juventude. Nós sofremos e nos alegramos junto com os personagens dessas histórias. Nós torcemos por eles, porque nos identificamos com os seus desafios, sofrimentos e tragédias. Mas a imaginação não fica restrita à arte e às histórias inventadas. Também a ciência e a filosofia contam, muitas vezes, com uma boa dose de imaginação. Quando estudamos sobre a pré-história da humanidade ou sobre os povos da Antiguidade, temos que tentar imaginar como viviam, como eram, como era o seu cotidiano, eles não tiravam selfies, não escreviam sobre suas vidas, não as pessoas comuns, não como nós fazemos hoje. Tudo o que podemos fazer é, a partir dos vestígios deixados por eles, imaginar como viviam, amavam e lutavam. Travamos um diálogo vivo com aqueles que morreram mudos, que foram silenciados pela força irresistível do tempo. Somos nós, com nossa imaginação e com nossas perguntas, que impedimos que eles virem pó, que não permitimos que desapareçam enquanto escoam as areias do tempo. É preciso tentar ver a imagem dos que viveram num tempo sem fotos nem filmes, enquanto ouvimos as histórias sobre eles; histórias de gladiadores, escravos, piratas, soldados e heróis. Tudo isso que nos encanta hoje ao vermos esses mesmos personagens transformados pela magia da fantasia na tela do cinema.
No século XIX, Thomas Bulfinch escreveu O Livro da Mitologia, que em seu prefácio dizia: “Se considerarmos que os únicos ramos úteis do conhecimento são aqueles que concorrem para o aumento de nosso patrimônio material ou nosso status social, então a Mitologia não pode ser apresentada nessa categoria”. Ou seja, o conhecimento da mitologia não é prático, não é útil num sentido econômico, ninguém pode se tornar mais rico com esse conhecimento e ouso estender isso ao conhecimento da história. Se vocês conhecerem alguém que ficou rico pesquisando ou ensinando História, por favor, me apresentem, que eu quero aprender como se faz. Mas Bulfinch prossegue: “Sem o conhecimento da Mitologia, boa parte de nossa elegante literatura não pode ser compreendida e apreciada”. Estendo isso aos filmes. Temos hoje filmes sobre a Guerra de Troia e o herói Aquiles, filmes sobre Hércules, o poderoso filho de Zeus, nas mais variadas versões. E temos ainda filmes adolescentes sobre meninos e meninas semideuses nos dias atuais, como Percy Jackson e o ladrão de raios. Ou ainda a Mulher-Maravilha, a amazona, uma mulher guerreira, nascida sob a influência da mitologia grega e transformada em super-heroína. Os quadrinhos, e agora o cinema com os filmes baseados nas histórias em quadrinhos, estão cheios de super-heróis saídos diretamente da mitologia, como o poderoso Thor, da Marvel. Essas narrativas fantásticas nos inspiram e dão, muitas vezes, significado às nossas vidas.

Referências:
BEDRAN, Bia. A arte de cantar e contar histórias: narrativas orais e processos criativos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.
BULFINCH, Thomas. O Livro da Mitologia: A Idade da Fábula. Tradução: Luciano Alves Meira. 1.ed. São Paulo: Martin Claret, 2013.
FUNARI, Pedro Paulo; NOELLI, Francisco Silva. Pré-história do Brasil. 4.ed. São Paulo: Contexto, 2015. – (Repensando a História).



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